A fé em tempos de crise
E só mesmo um mestre como Martin Scorsese para tirar um filme como Silêncio do papel. Maniqueísmos à parte, o longa estrelado (com intensidade) por Andrew Garfield e Adam Driver é sutil ao levantar uma série de preciosas questões sobre a fé dentro de um contexto desesperançoso. Embora o foco esteja no Cristianismo, mais precisamente na perseguição aos missionários jesuítas em solo japonês durante o século XVII, o roteiro inspirado na obra de Shûsaku Endô propõe uma reflexão original envolvendo a nossa relação com o sagrado. Por mais que narrativamente o filme não seja tão acessível assim, o ritmo lento e o confessional teor contemplativo soam cansativos em alguns momentos, o diretor exibe a sua particular visão religiosa ao revelar o quão tênue é a linha entre a fé e o fanatismo, entre o ato de crer e o ato de querer.
Sob um prisma impactante, Martin Scorsese, num primeiro momento, coloca o dedo na ferida ao contrastar a pureza dos seus protagonistas com a violência do governo nipônico para com os padres e os cristãos. Tortura, violência, dor, o veterano não poupa o espectador da verdade dos fatos, momentos capturadas em naturalistas planos abertos. Até mesmo os mais experientes, entretanto, podem falhar em alguns aspectos. E no segundo ato percebemos isso. Na ânsia de solidificar a jornada do Padre Rodrigues (Garfield), um arco intimista em que enxergamos as dúvidas, as certezas e a crença de um homem de Deus impotente diante da opressão, Scorsese peca ao tentar entender as motivações dos japoneses com inegável descuido. Na verdade, o longa vacila ao tratar a conduta dos perseguidores de maneira tão rasa e unidimensional, se distanciando de temas como o choque cultural, os interesses colonizadores e as questões antropológicas por trás da presença cristã num pais budista.
No momento em que parecia perto de perder as rédeas do seu próprio filme, no entanto, Martin Scorsese volta a elevar o nível da película ao tecer um comentário autoral sobre a nossa relação com a fé. Além de expor as "falhas de comunicação" por trás da interação entre os nipônicos e os apóstolos, o longa se aprofunda de vez nos conflitos mais íntimos dos missionários, principalmente com a entrada do personagem interpretado por Liam Neeson. Num torturante choque de realidade, Scorsese é categórico ao mostrar as consequências dos atos de fé dos protagonistas, ao expor o impacto do Cristianismo em solo oriental, se insurgindo contra qualquer forma de fanatismo, intolerância e supremacia ao defender basicamente o poder da mensagem em detrimento dos símbolos. Os objetos sacros são reverenciados, expostos frequentemente em expressivos planos detalhes, mas a devoção é posta em cheque no momento em que eles passam a "valer mais" do que a própria vida.
Em meio aos inúmeros questionamentos religiosos, aliás, o diretor é particularmente cuidadoso ao refletir também sobre a face mais incoerente do conflito, ao revelar o rastro de sangue causado por instituições regidas por dogmas tão pacíficos e amorosos. Além disso, Scorsese tece um corajoso comentário sobre a força da fé em tempos de crise, uma percepção intimista e compreensiva que não aceita qualquer julgamento quanto ao destino dos seus personagens e quanto àqueles que optam por manifestar as suas crenças de maneira silenciosa. O resultado é um último ato denso e humano que, combinado com a iluminada fotografia tropical de Rodrigo Prieto, o imersivo desenho de som florestal e a sucessão de magistrais planos abertos, transforma Silêncio numa das obras mais pessoais, imponentes e falhas da carreira de Martin Scorsese.
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