Leve e empolgante, Liga "ilumina" o Universo DC num filme que se orgulha dos seus super-heróis
Nada como um ano após o outro. Após fechar 2016 com uma baita dor de cabeça, principalmente após o insucesso do esquizofrênico Esquadrão Suicida, a dobradinha Warner\DC decidiu "recalcular" a sua rota. Percebendo que o tom soturno\realístico proposto por Christopher Nolan na elogiada Trilogia Cavaleiros das Trevas já dava sinais de cansaço, o que ficou bem claro com o modesto retorno comercial do irregular Batman V Superman: A Origem da Justiça, os executivos do estúdio resolveram descer do pedestal e olhar (tardiamente) para os seus próprios erros. Num diagnóstico bem óbvio, eles chegaram a conclusão que faltava luz ao errático Universo DC, que no contexto atual os super-heróis precisavam ser mais altruístas\humanos e menos raivosos\embrutecidos. A diversão escapista se tornou a alma do negócio. O sucesso da consolidada fórmula Marvel não me deixa mentir. Disposta a dar uma resposta ao seu tão devotado público, e ao fãs de cultura pop em geral, a Warner abriu 2017 em grande estilo com o empoderador Mulher-Maravilha. Mais do que simplesmente recolocar o Universo DC nos trilhos, o longa dirigido por Patty Jenkins posicionou a franquia na vanguarda das super-heroínas numa aventura densa, empolgante e consciente das suas responsabilidades.
Além disso, a película consagrou Diana Prince\Gal Gadot como um dos pilares da retomada do DCEU, reaquecendo as engrenagens ao defender "de peito aberto" a face mais superpoderosa dos seus personagens. Impulsionado pelo triunfo desta reluzente obra, a Warner constatou que o tom encontrado em Mulher-Maravilha precisava ecoar no seu principal projeto, o tão aguardado Liga da Justiça. Com uma renovada convicção, a empresa buscou na concorrência o respeitado Joss Whedon (Os Vingadores), o homem por trás da construção do Universo Marvel, dando a ele a missão de revigorar o filme idealizado (e praticamente finalizado) por Zack Snyder. Uma opção audaciosa que, contrariando as expectativas, se revelou um grande acerto. Leve e empolgante, Liga da Justiça coloca o Universo DC no prumo numa produção que se orgulha de fazer parte do gênero super-heroico. Mesmo diante de algumas evidentes falhas, a maioria delas envolvendo o pífio antagonista, o longa diverte ao trazer o melhor da dupla Whedon\Snyder, equilibrando a energia cômica do primeiro com a imponência estética do segundo num blockbuster envolvente recheado de momentos memoráveis. Uma produção grandiosa que, entre erros e acertos,. se mostra capaz de resgatar a força cinematográfica deste legendário supergrupo dos quadrinhos.
Indo de encontro ao inchaço narrativo de Batman Vs Superman, o roteiro assinado por Chris Terrio, Zack Snyder e Joss Whedon faz da segurança o seu principal aliado. Sem grandes pretensões, o argumento é habilidoso ao, inicialmente, trabalhar as individualidades dos heróis antes de estabelecê-los como uma equipe. Mesmo limitado pela falta de um 'background' mais sólido, um problema ocasionado pela "pressa" da Warner no que diz respeito aos filmes solos, Snyder (vou trata-lo como o diretor principal) se distancia da superficialidade do seu último filme ao realçar os traços mais marcantes de cada um dos seus personagens. Embora o Aquaman e o (subaproveitado) Ciborgue soem mais "ocos" que o restante da turma, o realizador é cuidadoso ao estabelecer a personalidade dos novos heróis e os seus respectivos papéis dentro do grupo. Fazendo uso da esperta montagem (a cena dos créditos iniciais é bela e inteligente) e de alguns pontuais diálogos expositivos, Snyder não encontra dificuldades para situar o espectador quanto a motivação dos vigilantes, conseguindo (dessa vez) desenvolvê-los sem sacrificar o ritmo da trama. Com um bem-vindo poder de síntese, o realizador é astuto ao introduzi-los durante o contextualizador primeiro ato, se preocupando em estreitar os laços entre o público e os "novos" heróis ao valorizar elementos como o (afiado) humor juvenil de Barry Allen (Ezra Miller), a aura rebelde de Arthur Curry (Jason Momoa) e a pegada hi-tech de Victor Stone (Ray Fisher). Dos três, porém, apenas o estabanado jovem Flash ganha um arco à sua altura, um protagonismo impagável potencializado (nitidamente) pela presença de Whedon e pelo seu talento na arte de construir alívios cômicos com relevância narrativa.
O mesmo Joss Whedon, aliás, é igualmente eficaz ao preparar a tão comentada (e temida) mudança de tom do Universo DC, enchendo a tela de leveza e bom humor sem necessariamente renegar os episódios dos filmes anteriores. Antes atormentado pela presença de um poderoso alienígena, o veterano Batman (Ben Affleck), por exemplo, surge aqui completamente desarmado, expondo a sua face mais humana enquanto tenta reparar os seus erros e reunir um supergrupo capaz de suprir a ausência do Superman (Henry Cavill) na Terra. Embora tenha os seus momentos mais irônicos, o Homem-Morcego segue sendo o personagem mais cerebral do grupo, evidenciando o esmero do longa quanto a não descaracterização dos super-heróis. Algumas mudanças, porém, eram necessárias. E a mais corajosa delas está na figura do Homem de Aço. Sem querer revelar muito, a reaparição do remodelado herói está entre as maiores surpresas do longa, uma repaginação totalmente coerente com o rumo da trama e que, neste primeiro momento, fez muito bem ao idealizado super-herói. Além de protagonizar uma das sequências mais espetaculares da franquia, ele rouba a cena com a sua poderosa "nova" postura, reforçando os problemas em torno da sua sisuda presença em BvS. Impecável ao estabelecer os super-heróis enquanto indivíduos, Zack Snyder (com a ajuda de Whedon) mostra inesperada desenvoltura ao arquitetar também a precoce junção do supergrupo. Sem precisar apelar para soluções mirabolantes, o roteiro é perspicaz ao uni-los em torno de uma causa comum, evitando forçar a barra ao evidenciar que estamos diante de um grupo desentrosado e sem grandes laços afetivos. Na verdade, por mais que a química entre os atores salte aos olhos, Snyder é perspicaz ao se concentrar nos conflitos entre os personagens estabelecidos anteriormente, principalmente entre Bruce Wayne e Diana Prince, pontuando o segundo ato com algumas breves questões mais densas. Nas entrelinhas, inclusive, o realizador é inteligente ao defender um subtexto mais realístico, ao traçar um interessante paralelo com a onda de terror e violência nas metrópoles na atualidade, iluminando o Universo DC ao tratar os super-heróis como um (mundano) símbolo de esperança.
O confuso processo de produção de Liga da Justiça, porém, se reflete nas falhas do longa. De longe o ponto mais fraco do filme, o vilão Lobo da Estepe (Ciarán Hinds) é um equivoco difícil de justificar. Embora seja o grande agente catalisador da trama, o "chiclete" capaz de unir o supergrupo num só filme, o antagonista é raso e unidimensional, daqueles que quer dominar o mundo sem qualquer tipo de motivação aparente. Somado a isso, Snyder falha ao construir o (inexistente) senso de ameaça em torno do personagem, ao torna-lo realmente perigoso aos olhos do público, resultando num clímax tecnicamente impactante, mas vazio e previsível. Pra piorar, o visual do vilão está entre as piores coisas do novo Universo DC. Assim como já havia feito em BvS, vide o genérico Apocalipse, o realizador decepciona ao investir num CGI de péssima qualidade, uma aparência borrachuda e inexpressiva, criando um personagem digital que nasceu datado. Pobre Ciarán Hinds (Munique).Outro ponto que incomoda é a falta de consequência quando o assunto é o desenvolvimento das rixas do filme anterior. Por mais que o humor funcione a contento durante a maioria parte da trama, o roteiro esvazia algumas promissoras situações em prol da leveza e do escapismo, uma abordagem simplificada que reduz o impacto em torno de um aguardado reencontro. É preciso frisar, entretanto, que a maior parte destes erros, tal qual em BvS, são amenizados pela imponência do supergrupo. Liderados pela magnífica Mulher-Maravilha (que heroína), a Liga funciona com dinamismo no campo de batalha, um trabalho conjunto valorizado pelo forte senso de simultaneidade de Snyder. Num todo, aliás, o elenco se sai muito bem e abraça o viés superpoderoso do longa sem um pingo de vergonha. Entre os destaques estão a empoderada Gal Gadot, o hilário Ezra Miller e o expansivo Jason Momoa, Já Ben Affleck parece deslocado num primeiro momento, mas com o avançar da trama mostra sensibilidade ao revelar a face mais vulnerável do Homem Morcego.
O virtuosismo de Zack Snyder, porém, é verdadeiramente percebido nas memoráveis sequências de ação. Tirando o máximo de cada um dos heróis, o realizador é sagaz ao trabalhar o desentrosamento do grupo e o senso de improviso nos empolgantes embates, presenteando os fãs dos quadrinhos com cenas engenhosas, reluzentes e totalmente compreensíveis aos olhos do público. Dono de uma assinatura própria, ele transforma a sua tão estimada câmera lenta num recurso narrativo bem mais relevante, um dos principais responsáveis pelo triunfante Flash. Além de valorizar a plasticidade do movimentos dos personagens, vide a fantástica primeira aparição da Mulher Maravilha, Snyder faz um inventivo trabalho na composição da super-velocidade do jovem herói, combinando o 'ultra slow motion' e os luminosos efeitos visuais com extrema originalidade. Sem querer revelar muito, a cena do memorial é fantástica, um daqueles momentos catárticos que faz jus ao legado e a grandeza da Liga da Justiça. Em contrapartida, em uma ou duas situações o CGI se mostra um tanto quanto artificial, uma sequela nitidamente ocasionada pelo processo de refilmagens e pela falta de convicção da Warner\DC na fase pré-Mulher-Maravilha. Nem só de ação vive Snyder. Embora presenteie os fãs do gênero com embates impactantes, vide o imponente confronto no esgoto e a ágil batalha em Themyscira, o diretor mostra o seu reconhecido bom gosto imagético ao investir em elegantes planos abertos, em criativos movimentos de câmera panorâmicos e enquadramentos pensados para impactar. O resultado são 'frames' dignos de moldura e takes de ação de encher os olhos. Um predicado incrementado pela colorida fotografia fria do alemão Fabain Wagner (Victor Frankenstein).
Embalado pela esperta trilha sonora de Danny Elfman, delicada ao "reciclar" os acordes originais dos clássicos Superman (1978) e Batman (1989), Liga da Justiça empolga ao defender a luz em tempos nebulosos. Indo de encontro ao pretensiosismo de Batman Vs Superman, Zack Snyder (com o apoio luxuoso de Joss Whedon) investe numa abordagem ágil e descomplicada, extraindo o melhor de cada um dos seus icônicos super-heróis ao mostrar que eles podem "salvar o mundo" sem parecerem rabugentos e\ou amargurados. Em suma, a Liga se revela um filme falho, mas que sabe como divertir.
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