sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Do Fundo do Baú (Sou ou Não Sou?)

Só mesmo um mestre da comédia como Mel Brooks para tirar do papel uma produção como Sou ou Não Sou (1983), To Be or Not to Be no original, uma refilmagem impagável do clássico homônimo de 1942. Numa clara mostra que, quando bem idealizados, alguns remakes são totalmente justificáveis, o longa dirigido por Alan Johnson esbanja maturidade ao extrair o humor de uma premissa naturalmente dramática. Com um excepcional 'timing cômico', o realizador tira o máximo do seu talentoso elenco ao narrar as desventuras de uma trupe teatral polonesa durante a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial, equilibrando realidade e escapismo numa película envolvente, tensa e naturalmente engraçada. Um filme que, embora não seja tão denso quanto o original, consegue resgatar o espírito do original ao valorizar a arte em meio ao horror. 

Com roteiro assinado por Thomas Meehan e Ronny Graham, Sou ou Não Sou empolga ao nos brindar com um 'mise en scene' ágil e inteligente. Antes de estabelecer o contexto bélico presente na premissa, Alan Johnson é inicialmente astuto ao mostrar a rotina desta trupe teatral, ao introduzir não só os carismáticos personagens, como também os números e o amor dos atores pela sua arte. Sem tempo a perder, o realizador passeia pela coxia com fluidez, criando uma sólida conexão entre o público e os personagens enquanto estabelece a iminente ameaça nazista. Na trama, conhecemos o casal Frederick (Mel Brooks) e Anna Bronski (Anne Bancroft), as estrelas de uma das mais populares trupes teatrais em solo polonês. Enquanto ele estava sempre ocupado com o funcionamento do grupo, ela parecia disposta a viver um novo romance. Durante uma das apresentações do marido, Anna conhece o charmoso tenente Sobinski (Tim Matheson), um oficial polonês e grande fã da atriz. As expectativas da estrela, porém, são frustradas com a invasão dos nazistas e a consequente ida do militar para o campo de batalha. Já em solo britânico, Sobinski é pego de surpresa ao descobrir a identidade de um espião alemão na Polônia e que ele tinha em mãos uma lista com os esconderijos dos principais grupos de resistência local. Sem tempo a perder, o militar retorna a sua terra natal em busca de ajuda, recrutando o casal de atores para uma "missão" tão inusitada quanto perigosa. 


Reconhecido pelos seus trabalhos como coreógrafo, Alan Johnson enche a tela de ritmo ao preparar as suas inspiradas gags. Com um afiado senso de simultaneidade, o realizador se mostra sempre um passo à frente quando o assunto é a construção da piada e o uso do humor de repetição. Movendo as suas peças com enorme desenvoltura ao longo da trama, Johnson é cuidadoso ao valorizar tanto a ironia fina, quanto as risadas mais escrachadas, encontrando um perspicaz meio termo ao preparar o terreno para as impagáveis situações cômicas. De longe um dos tipos mais engraçados da película, o oficial nazista vivido pelo extraordinário Charles Durning, por exemplo, se torna a "escada" perfeita para Mel Brooks e sua turma. Na pele do chefe da Gestapo, o talentoso ator brinca com os estereótipos ao criar uma figura expansiva e irritadiça, um homem que acredita estar a par de tudo o que o cerca, mas não enxerga um impostor bem na sua frente. Sem querer revelar muito, o primeiro encontro entre Brooks e Durning sintetiza a sagacidade de Johnson ao antecipar elementos, ao estruturar as gags e ao extrair o humor por trás da desconfortável situação dos atores poloneses. Através de diálogos astutos e naturalmente cômicos, ele faz questão de realçar o poder de improviso dos personagens em meio à tensão, permitindo que o público faça parte da construção das piadas ao tornar as decisões dos protagonistas o mais inteligível possível. Exageros a parte, o argumento é habilidoso ao explorar os disfarces num ambiente em que os oficiais não se conheciam, ao construir o jogo de gato e rato entre poloneses e nazistas, tornando as "missões" da trupe naturalmente hilárias aos olhos do público. E isso, apesar do viés escapista, sem ferir o contexto realístico defendido pelo argumento. É interessante ver, aliás, como o argumento se distancia dos clichês ao expor (com sutileza) não só o drama dos judeus, como também dos homossexuais, um foco amplo e totalmente coerente dentro de uma produção sobre o cenário artístico polonês na década de 1930.


Recheado de soluções cômicas memoráveis, vide a genialidade do roteiro ao explicar o uso do inglês num filme sobre poloneses e alemães, Sou ou Não Sou faz jus ao viés teatral ao apostar na força do talentoso elenco. Embora chame a atenção pelo seu valor de produção, em especial a detalhista direção de arte, a crível cenografia histórica, o cuidadoso trabalho dos figurinistas e a refinada fotografia de época de Gerald Hirschfeld, o remake extrai o melhor dos seus protagonistas, a começar pelo incrível Mel Brooks. Dando vida ao convencido ator shakesperiano Frederick, o ator cria um herói improvável, uma figura humana e vaidosa capaz de brilhar nos momentos de tensão. Fazendo um primoroso uso da metalinguagem, Brooks arranca recorrentes risadas ao encarar diversos disfarces, esbanjando carisma e uma excelente química com o restante do elenco, principalmente com a magnética Anne Bancroft (A Primeira Noite de um Homem). Na pele da sedutora Anna, ela flerta com os clássicos filmes de espionagem ao criar uma mulher forte e convincente, uma figura imponente que rouba a cena sempre que está nela. O mesmo, aliás, acontece com o já elogiado Charles Durning (Um Dia de Cão). Indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, ele sintetiza o espírito do longa ao criar um antagonista ao mesmo tempo vil e desastrado, um homem estúpido que "sofre" nas mãos dos roteiristas. Sem medo de errar, a impagável relação entre o Coronel Erhardt de Durning e o rígido Capitão Shultz do engraçadíssimo Christopher Lloyd (De Volta para o Futuro) rende alguns dos melhores momentos da película, principalmente pelo ótimo tempo de comédia da dupla.


Contando ainda com as marcantes presenças de Tim Matheson, George Gaynes (Loucademia de Policia) e George Wyner, Sou ou Não Sou usa o humor para fazer justiça numa produção surpreendente. Consciente da delicadeza do tema, Alan Johnson mostra versatilidade ao explorar a comédia em sua máxima potência, misturando estilos e gêneros ao arrancar risadas sem esquecer de refletir sobre o drama dos poloneses (judeus ou não) durante a Segunda Guerra Mundial. Dividido entre o escapismo e o realismo, o diretor\coreógrafo flerta com obras do quilate de O Grande Ditador (1940) ao expor os absurdos deste doloroso conflito sob um ponto de vista irônico e genuinamente artístico. Uma comparação justificada que, por si só, já diz muito sobre a qualidade do material apresentado. 

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