sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Cinco Filmes (Martin Scorsese)


Um mestre na arte da direção, Martin Scorsese se tornou uma marca dentro da Sétima Arte. Dono de uma assinatura vigorosa, o veterano completou 75 anos em grande forma, reafirmando frequentemente a sua genialidade em projetos autorais e diversificados. Ao longo das últimas seis décadas, Scorsese ajudou a modificar a forma de se fazer\enxergar o cinema em Hollywood, se distanciando da imponência estética dos anos 1950\1960 ao valorizar a força narrativa. Seus personagens são humanos e imperfeitos. Suas produções intensas e realísticas. Sem floreios, Scorsese - assim como grande parte dos seus companheiros de geração - fez questão de realçar a violência no voraz estilo de vida urbano norte-americano, nos presenteando com pérolas do quilate de Taxi Driver (1976), Touro Indomável (1980), Os Bons Companheiros (1990), O Aviador (2004) e mais recentemente Os Infiltrados (2006) e O Lobo de Wall Street (2013). Ao longo da sua prolifera carreira, entretanto, Scorsese nunca se viu preso ao "cinema de gênero". Mesmo nos seus filmes mais agressivos, o realizador desfilava a sua versatilidade ao transitar habilmente entre os segmentos cinematográficos, uma característica cada vez mais rara dentro da indústria. Neste Cinco Filmes, portanto, o tema hoje é Martin Scorsese e a sua incrível capacidade de explorar o Cinema em sua máxima potência. Neste artigo, porém, irei tentar fugir do lugar comum e analisar um pouco do "Lado B" deste grande diretor. 

- Alice Não Mora Mais Aqui (1974)


Um dos principais expoentes do movimento intitulado Nova Hollywood, Martin Scorsese estabeleceu o seu nome dentro da indústria com projetos pequenos e realísticos. Assim como os seus companheiros de geração, entre eles Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão), Peter Bogdanovich (A Última Sessão de Cinema). Michael Cimino (O Franco Atirador), Brian de Palma (Scarface) e Dennis Hooper (Easy Rider), ele usou os seus primeiros trabalhos para mostrar as mazelas do americano comum, sem grandes floreios e\ou concessões. Através de personagens genuinamente humanos, um fato comum na sua filmografia, Scorsese se debruçou inicialmente sobre os problemas mais universais, saindo em defesa da verossimilhança em títulos como o precioso Alice Não Mora mais Aqui. Num daqueles projetos capaz de sintetizar a proposta da Nova Hollywood, o então jovem realizador se esquivou dos clichês românticos ao narrar as desventuras de uma viúva obrigada a enfrentar o machismo e a desigualdade para sustentar o seu espevitado pequeno filho. Apesar de a premissa sugerir o contrário, Scorsese é sagaz ao revelar esta realidade sob um prisma leve e revigorante, equilibrando drama e humor na medida certa ao transitar por temas como a violência doméstica, a desigualdade entre os gêneros e a busca pela independência feminina.


Embora em nenhum momento soe panfletário, Alice Não Mora mais Aqui conquistou a crítica da época ao tratar a questão do empoderamento feminino de maneira direta e universal, se insurgindo contra os velhos rótulos ao tirar do papel uma protagonista moderna e multidimensional. Uma mulher que, após anos "presa" ao idealizado papel da dona de casa, precisa reaprender a andar com as suas próprias pernas. Com a liberdade para realçar todas as nuances da sua incrível personagem, Ellen Burstyn desfilou o seu magnetismo em cena ao tornar a jornada de Alice perfeitamente compreensível aos olhos do público. Expansiva e carismática, a atriz brilhou ao interiorizar o misto de esperança e resignação da viúva, o seu desconforto e a sua inquietude, nos brindando com uma performance memorável. Um trabalho, justificadamente, reconhecido pela Academia com o Oscar de Melhor Atriz. Somado a isso, Scorsese esbanja naturalismo ao construir a disfuncional relação entre Alice e o seu filho, o comunicativo Tommy (Alfred Lutter, magnífico), reforçando a estreita conexão entre os dois através de diálogos ágeis e takes recheados de ternura. Num todo, aliás, mesmo limitado pelo baixo orçamento, o realizador já mostrava o virtuosismo técnico que o transformaria num dos grandes da sua profissão. Com fluídos movimentos de câmera, inspirados planos sequências e refinados enquadramentos, Scorsese parecia passear discretamente em torno dos seus personagens, extraindo a verdade por trás dos diálogos ao valorizar o viés intimista defendido pelo longa. Contando ainda com interessantes personagens secundários, entre eles a pequena delinquente vivida por Jodie Foster, Alice Não Mora mais Aqui revela a face mais otimista do cinema de Martin Scorsese numa obra vibrante e consciente.

- O Rei da Comédia (1983)


Não se engane pelo título. Embora arranque sinceras risadas, O Rei da Comédia está entre os filmes mais desconfortáveis da carreira Martin Scorsese. Num relato peculiar sobre a face mais insana do 'show biz', o realizador esbanja originalidade ao tratar a busca pela fama como uma espécie de doença. Através de personagens emocionalmente frágeis, Scorsese é sagaz transitar por temas como a obsessão, o fanatismo, o fracasso e a solidão, refletindo com sensibilidade sobre questões essencialmente urbanas ao narrar a inusitada "relação" entre um ingênuo comediante amador e o seu ídolo, um apresentador popular e egocêntrico. Indo de encontro ao viés cínico defendido por outras películas sobre o mundo do 'show biz', entre eles os fantásticos A Malvada (1950) e Rede de Intrigas (1976), Scorsese instiga ao defender uma abordagem mais doce e compreensiva. Em nenhum momento ele parece interessado em rir do obstinado protagonista, um homem tolo e sonhador que se mostra incapaz de distinguir as suas fantasias da realidade. No embalo da soberba performance de Robert De Niro, magnífico ao capturar a loucura do comediante da maneira mais humana possível, Scorsese abraça o drama ao expor a indigna situação do protagonista. Ao mostrar o impacto da frustração na rotina de um fã.


Quando necessário, porém, o realizador é igualmente astuto ao revelar os perigos em torno do fanatismo, flertando pontualmente com o suspense e a comédia de erros ao tentar entender como funciona a mente deste grupo de pessoas que se dedica ferozmente a um artista\banda\personalidade. Além disso, graças à afiada montagem, Scorsese encontra as brechas necessárias para desenvolver a figura do idolatrado, no caso o apresentador vivido pelo então "esquecido" mestre da comédia Jerry Lewis. Responsável pelas reações mais engraçadas do longa, o saudoso ator voltou aos holofotes dando vida a um tipo complexo e distante, um homem de sucesso que viu a sua fama se tornar um fardo. Nas entrelinhas, inclusive, Scorsese é sutil ao tecer um breve comentário sobre as sequelas do sucesso, extraindo da figura do reconhecidamente mal humorado Jerry Lewis a sisudez necessária para mostrar as contradições em torno da vida de um comediante. Um resgate precioso que faz de O Rei da Comédia uma das obras mais particulares sobre a indústria do entretenimento.

- Depois de Horas (1985)


Quando o assunto é irreverência, entretanto, nenhuma outra obra da filmografia de Martin Scorsese supera o grau de cinismo mostrado no 'nonsense' Depois de Horas. Com um afiado senso de humor, o realizador resolve detonar o estila de vida 'yuppie' numa comédia de erros marcada pela excentricidade e pelo forte teor crítico. Impulsionado pela hilária performance de Griffin Dunne (Um Lobisomem Americano em Londres), magnífico ao reproduzir a espiral de loucura de Paul Hackett, um "engravatado" devotado ao seu trabalho que se vê em apuros na noite que decide "sair da rotina", Scorsese é ferozmente irônico ao expor o vazio e a vida de aparências deste homem "bem sucedido". O perigo, aqui, assume uma face bizarramente urbana, desconstruindo a falsa superioridade do personagem enquanto o apresenta a realidade. Na verdade, o tom satírico defendido pelo diretor não só ajuda a reforçar os contrastes, como também a questionar os motivos em torno da exaltação da figura do executivo. É interessante ver como as mulheres caem aos pés de Paul, como todos os personagens parecem acreditar nele. Aos poucos, porém, percebemos que não pelos motivos usuais. Ao contrário das expectativas, eles não querem dinheiro, poder e\ou status. Querem apenas um ombro amigo, uma companhia, alguém em quem confiar. E isso o homem de negócios parece não ser capaz de oferecer. Nas entrelinhas, inclusive, Scorsese é igualmente perspicaz ao defender o valor (nem sempre reconhecido) da arte, do seu trabalho, uma provocada sutil que ganha voz de maneira absurda dentro do nervoso clímax.


Como de costume na sua filmografia, no entanto, o realizador amplia o escopo da trama ao escancarar também as mazelas do estilo de vida urbano em uma insana Nova Iorque na década de 1980. Numa óbvia alusão ao clássico O Mágico de Oz, Martin Scorsese transforma Paul numa espécie de Dorothy engravatada e a região conhecida como Soho numa Oz suja e mundana.  A partir deste olhar inocente\incrédulo, o diretor é genial ao preencher a trama com coadjuvantes propositalmente estereotipados, identificando através deles males genuinamente urbanos, entre eles a solidão, a violência, a depressão e a toxicidade das grandes metrópoles. E isso, obviamente, sob um prisma exótico e bem humorado. Quando o assunto é o aspecto visual, entretanto, Scorsese é habilidoso ao realçar o aspecto mais verossímil do roteiro. A fotografia soturna do alemão Michael Ballhaus, por exemplo, reforça a atmosfera de tensão em torno do protagonista ao valorizar o vazio de NY, ao iluminar somente o estritamente necessário. Já a equipe de direção de arte exalta o caos ao compor os detalhistas cenários internos, espaços peculiares, mas estranhamente habitáveis que ajudam a ampliar a sensação de que algo está errado. Com uma montagem vibrante, potencializada pela enervante trilha sonora de Howard Shore, Scorsese é astuto ao traduzir o choque de realidade de Paul, ao extrair o humor do desconforto. Mesmo nas ambientações mais herméticas, ele move a sua câmera com enorme fluidez, evidenciando a ironia fina dos diálogos ao investir ora em criativos planos conjuntos, ora em fechados enquadramentos individualizados. Diante de inúmeros predicados técnicos e narrativos, Depois de Horas é um trabalho inquieto e irreverente com a assinatura do mestre Martin Scorsese.

- Cassino (1995)


Tema recorrente na sua filmografia, Martin Scorsese expõe o submundo do crime organizado com glamour e violência no envolvente Cassino. Em quase três horas, o realizador voltou a se "encantar" pela face mais amoral da máfia numa história de amor, ambição, poder e infidelidade. Embora não seja tão impactante quanto o grande trabalho de Scorsese dentro do gênero, o extraordinário Os Bons Companheiros (1990), o longa fascina ao mostrar as consequências da vida no crime sob um prisma íntimo e mais irônico. Encantado pelas falhas e pelas nuances sentimentais dos seus personagens, o diretor esbanja propriedade ao construir a ascensão e a queda de dois amigos completamente diferentes, o cerebral 'bookmaker' Sam (Robert De Niro) e o irritadiço gangster Nick (Joe Pesci). Fazendo um primoroso uso do recurso da narração, Scorsese brilha ao pintar um expressivo relato sobre a máfia dos cassinos em Las Vegas nos anos 1970 e 1980, expondo a violência, a sede pelo poder e a ação escusa dos governantes enquanto desenvolve os seus dois polarizados protagonistas. De um lado temos um homem que cresceu pelo seu talento, conquistou a confiança dos mafiosos da sua região e foi o escolhido para comandar um dos cassinos mais rentáveis de LA. Do outro um gangster "raiz", um tipo feroz e agressivo que chegou ao topo na base da força.


Sem economizar na violência, Scorsese transita habilmente entre o glamour e a realidade, entre o charme e a degradação, criando um interessante contraste ao revelar a sujeira por trás da opulência visual de Las Vegas. O foco, porém, não está ação da máfia, nem tão pouco na investigação policial, mas no impacto da ganância na rotina destes dois velhos parceiros. Como de costume na sua filmografia, Scorsese dá uma verdadeira aula na construção dos personagens, estreitando os laços e evidenciando os crescentes conflitos entre eles com extrema coesão narrativa. Uma relação instável potencializada pela presença do furacão Ginger, uma figura magnética que surge como a alma da película. Impulsionada pela soberba performance de Sharon Stone, a fogosa esposa do Sam aquece a trama ao não só expor o pior e o melhor dos protagonistas, como também ao evidenciar a deterioração humana em meio ao caos urbano, realçando o aspecto mais imprevisível da trama ao render um explosivo triângulo amoroso. Dito isso, com a dobradinha Pesci\De Niro distribuindo 'fucks' em grande estilo, Cassino sintetiza o poder do cinema de Martin Scorsese ao propor um recorte passional e extremamente autoral sobre o crime organizado em uma Las Vegas regida pelo poder do capital.

- A Invenção de Hugo Cabret (2012)


Primeira investida de Martin Scorsese no universo infantil, A Invenção de Hugo Cabret comprova porque o diretor é considerado um dos melhores de todos os tempos. Numa grande homenagem a magia proporcionada pelo cinema, o veterano surpreendeu ao tirar do papel um trabalho para todas as idades, repleto de sensibilidade e encanto. Uma adaptação bem conduzida, que, mesmo com um ritmo mais lento do que o esperado, causou um inegável fascínio ao se revelar um poético tributo a um dos pilares da Sétima Arte, o visionário George Meliés. Por trás da lúdica aventura envolvendo um jovem em busca do paradeiro do seu querido pai, Scorsese reafirmou a universalidade da sua arte ao promover uma fascinante ode ao legado do homem por trás da "fantasia cinematográfica". Com personagens cativantes, um roteiro repleto de sensibilidade e um refinamento estético poucas vezes replicado desde então, Scorsese contornou o descompasso rítmico inicial ao se encantar pela jornada do pequeno Hugo, mostrando a sua face mais terna e sensível numa produção genuinamente emocionante. Uma produção mágica e imersiva que, graças ao prestígio do legendário diretor, se mostrou capaz de resgatar a inocência perdida numa indústria que cada vez mais prioriza o lucro em detrimento da originalidade. Em tempo, só mesmo um mestre como Martin Scorsese para "pensar" o 3-D de maneira tão criativa e expressiva, um dos poucos realizadores a tornar este recurso realmente relevante para a experiência fílmica.

Menção Honrosa

- Cabo do Medo (1991)


Frequentemente vilanizados, os remakes, quando bem idealizados, podem render ótimas produções. Martin Scorsese que o diga. Vencedor do Oscar de Melhor Direção com o fantástico Os Infiltrados (2006), refilmagem do cult asiático Conflitos Internos (2002), o veterano já havia utilizado esta fórmula com sucesso anteriormente no sufocante Cabo do Medo (1991). Com Robert De Niro no auge da sua forma física e técnica na pele do insano Max Cady, Scorsese mostrou a sua versatilidade ao potencializar o suspense e a violência do longa original, o igualmente memorável Círculo do Medo (1962). Além de "modernizar" o argumento, o diretor procurou realçar a imperfeição dos seus personagens ao narrar as desventuras de um advogado atarefado (Nick Nolte) que, após perder uma ação criminal, vê a sua família entrar na vingativa rota de mira de um violento ex-presidiário. Impulsionado pela assustadora performance de De Niro, Scorsese instiga ao construir a crescente atmosfera de tensão e o efeito Max dentro de uma família nada funcional. Indo além do suspense pelo suspense, o longa se preocupa em solidificar os arcos dos personagens, principalmente da espevitada filha vivida pela então estrela em ascensão Juliette Lewis, reforçando o aspecto mais desesperador da trama ao capturar a impotência de um pai\marido diante de uma figura genuinamente perigosa. O resultado é um dos grandes representantes do gênero da década de 1990, um filme nervoso e envolvente que culmina num dos últimos atos mais nervosos da carreira de Martin Scorsese. Uma aula de cinema e de construção da tensão.

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Um comentário:

Wanderreis disse...

Detesto filmes de Scorsese.