Um mestre na arte da direção, Martin Scorsese se tornou uma marca dentro
da Sétima Arte. Dono de uma assinatura vigorosa, o veterano completou 75 anos em grande forma, reafirmando frequentemente a sua genialidade em projetos
autorais e diversificados. Ao longo das últimas seis décadas, Scorsese ajudou a
modificar a forma de se fazer\enxergar o cinema em Hollywood, se distanciando
da imponência estética dos anos 1950\1960 ao valorizar a força narrativa. Seus
personagens são humanos e imperfeitos. Suas produções intensas e realísticas. Sem floreios, Scorsese - assim como grande parte dos seus companheiros de
geração - fez questão de realçar a violência no voraz estilo de vida urbano
norte-americano, nos presenteando com pérolas do quilate de Taxi Driver (1976), Touro
Indomável (1980), Os Bons Companheiros (1990), O Aviador (2004) e mais recentemente Os Infiltrados (2006) e O Lobo de Wall Street (2013). Ao
longo da sua prolifera carreira, entretanto, Scorsese nunca se viu preso ao
"cinema de gênero". Mesmo nos seus filmes mais agressivos, o
realizador desfilava a sua versatilidade ao transitar habilmente entre os
segmentos cinematográficos, uma característica cada vez mais rara dentro da
indústria. Neste Cinco Filmes, portanto, o tema hoje é Martin Scorsese e a sua
incrível capacidade de explorar o Cinema em sua máxima potência. Neste artigo,
porém, irei tentar fugir do lugar comum e analisar um pouco do "Lado
B" deste grande diretor.
Um dos principais expoentes do movimento intitulado Nova Hollywood,
Martin Scorsese estabeleceu o seu nome dentro da indústria com projetos
pequenos e realísticos. Assim como os seus companheiros de geração, entre eles
Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão), Peter Bogdanovich (A Última Sessão de
Cinema). Michael Cimino (O Franco Atirador), Brian de Palma (Scarface) e Dennis
Hooper (Easy Rider), ele usou os seus primeiros trabalhos para mostrar as
mazelas do americano comum, sem grandes floreios e\ou concessões. Através de
personagens genuinamente humanos, um fato comum na sua filmografia, Scorsese se
debruçou inicialmente sobre os problemas mais universais, saindo em defesa da
verossimilhança em títulos como o precioso Alice Não Mora mais Aqui. Num daqueles
projetos capaz de sintetizar a proposta da Nova Hollywood, o então jovem
realizador se esquivou dos clichês românticos ao narrar as desventuras de uma
viúva obrigada a enfrentar o machismo e a desigualdade para sustentar o seu espevitado
pequeno filho. Apesar de a premissa sugerir o contrário, Scorsese é sagaz ao
revelar esta realidade sob um prisma leve e revigorante, equilibrando drama e
humor na medida certa ao transitar por temas como a violência doméstica, a
desigualdade entre os gêneros e a busca pela independência feminina.
Embora em nenhum momento soe panfletário, Alice Não Mora mais Aqui
conquistou a crítica da época ao tratar a questão do empoderamento feminino de
maneira direta e universal, se insurgindo contra os velhos rótulos ao tirar do
papel uma protagonista moderna e multidimensional. Uma mulher que, após anos
"presa" ao idealizado papel da dona de casa, precisa reaprender a
andar com as suas próprias pernas. Com a liberdade para realçar todas as
nuances da sua incrível personagem, Ellen Burstyn desfilou o seu magnetismo em
cena ao tornar a jornada de Alice perfeitamente compreensível aos olhos do
público. Expansiva e carismática, a atriz brilhou ao interiorizar o misto de
esperança e resignação da viúva, o seu desconforto e a sua inquietude, nos
brindando com uma performance memorável. Um trabalho, justificadamente,
reconhecido pela Academia com o Oscar de Melhor Atriz. Somado a isso, Scorsese
esbanja naturalismo ao construir a disfuncional relação entre Alice e o seu
filho, o comunicativo Tommy (Alfred Lutter, magnífico), reforçando a estreita
conexão entre os dois através de diálogos ágeis e takes recheados de ternura.
Num todo, aliás, mesmo limitado pelo baixo orçamento, o realizador já mostrava
o virtuosismo técnico que o transformaria num dos grandes da sua profissão. Com
fluídos movimentos de câmera, inspirados planos sequências e refinados
enquadramentos, Scorsese parecia passear discretamente em torno dos seus
personagens, extraindo a verdade por trás dos diálogos ao valorizar o viés intimista
defendido pelo longa. Contando ainda com interessantes personagens secundários,
entre eles a pequena delinquente vivida por Jodie Foster, Alice Não Mora mais
Aqui revela a face mais otimista do cinema de Martin Scorsese numa obra
vibrante e consciente.
- O Rei da Comédia (1983)
Não se engane pelo título. Embora arranque sinceras risadas, O Rei da
Comédia está entre os filmes mais desconfortáveis da carreira Martin Scorsese.
Num relato peculiar sobre a face mais insana do 'show biz', o realizador esbanja
originalidade ao tratar a busca pela fama como uma espécie de doença. Através
de personagens emocionalmente frágeis, Scorsese é sagaz transitar por temas
como a obsessão, o fanatismo, o fracasso e a solidão, refletindo com
sensibilidade sobre questões essencialmente urbanas ao narrar a inusitada
"relação" entre um ingênuo comediante amador e o seu ídolo, um
apresentador popular e egocêntrico. Indo de encontro ao viés cínico defendido
por outras películas sobre o mundo do 'show biz', entre eles os fantásticos A
Malvada (1950) e Rede de Intrigas (1976), Scorsese instiga ao defender uma
abordagem mais doce e compreensiva. Em nenhum momento ele parece interessado em
rir do obstinado protagonista, um homem tolo e sonhador que se mostra incapaz
de distinguir as suas fantasias da realidade. No embalo da soberba performance
de Robert De Niro, magnífico ao capturar a loucura do comediante da maneira
mais humana possível, Scorsese abraça o drama ao expor a indigna situação do
protagonista. Ao mostrar o impacto da frustração na rotina de um fã.
Quando necessário, porém, o realizador é igualmente astuto ao revelar os
perigos em torno do fanatismo, flertando pontualmente com o suspense e a
comédia de erros ao tentar entender como funciona a mente deste grupo de
pessoas que se dedica ferozmente a um artista\banda\personalidade. Além disso,
graças à afiada montagem, Scorsese encontra as brechas necessárias para
desenvolver a figura do idolatrado, no caso o apresentador vivido pelo então
"esquecido" mestre da comédia Jerry Lewis. Responsável pelas reações
mais engraçadas do longa, o saudoso ator voltou aos holofotes dando vida a um
tipo complexo e distante, um homem de sucesso que viu a sua fama se tornar um
fardo. Nas entrelinhas, inclusive, Scorsese é sutil ao tecer um breve
comentário sobre as sequelas do sucesso, extraindo da figura do
reconhecidamente mal humorado Jerry Lewis a sisudez necessária para mostrar as
contradições em torno da vida de um comediante. Um resgate precioso que faz de
O Rei da Comédia uma das obras mais particulares sobre a indústria do
entretenimento.
- Depois de Horas (1985)
Quando o assunto é irreverência, entretanto, nenhuma outra obra da
filmografia de Martin Scorsese supera o grau de cinismo mostrado no 'nonsense'
Depois de Horas. Com um afiado senso de humor, o realizador resolve detonar o
estila de vida 'yuppie' numa comédia de erros marcada pela excentricidade e
pelo forte teor crítico. Impulsionado pela hilária performance de Griffin Dunne
(Um Lobisomem Americano em Londres), magnífico ao reproduzir a espiral de
loucura de Paul Hackett, um "engravatado" devotado ao seu trabalho
que se vê em apuros na noite que decide "sair da rotina", Scorsese é
ferozmente irônico ao expor o vazio e a vida de aparências deste homem "bem
sucedido". O perigo, aqui, assume uma face bizarramente urbana,
desconstruindo a falsa superioridade do personagem enquanto o apresenta a
realidade. Na verdade, o tom satírico defendido pelo diretor não só ajuda a
reforçar os contrastes, como também a questionar os motivos em torno da
exaltação da figura do executivo. É interessante ver como as mulheres caem aos
pés de Paul, como todos os personagens parecem acreditar nele. Aos poucos,
porém, percebemos que não pelos motivos usuais. Ao contrário das expectativas,
eles não querem dinheiro, poder e\ou status. Querem apenas um ombro amigo, uma
companhia, alguém em quem confiar. E isso o homem de negócios parece não ser
capaz de oferecer. Nas entrelinhas, inclusive, Scorsese é igualmente perspicaz
ao defender o valor (nem sempre reconhecido) da arte, do seu trabalho, uma
provocada sutil que ganha voz de maneira absurda dentro do nervoso clímax.
Como de costume na sua filmografia, no entanto, o realizador amplia o
escopo da trama ao escancarar também as mazelas do estilo de vida urbano em uma
insana Nova Iorque na década de 1980. Numa óbvia alusão ao clássico O Mágico de
Oz, Martin Scorsese transforma Paul numa espécie de Dorothy engravatada e a
região conhecida como Soho numa Oz suja e mundana. A partir deste olhar inocente\incrédulo, o
diretor é genial ao preencher a trama com coadjuvantes propositalmente
estereotipados, identificando através deles males genuinamente urbanos, entre
eles a solidão, a violência, a depressão e a toxicidade das grandes metrópoles.
E isso, obviamente, sob um prisma exótico e bem humorado. Quando o assunto é o
aspecto visual, entretanto, Scorsese é habilidoso ao realçar o aspecto mais
verossímil do roteiro. A fotografia soturna do alemão Michael Ballhaus, por
exemplo, reforça a atmosfera de tensão em torno do protagonista ao valorizar o
vazio de NY, ao iluminar somente o estritamente necessário. Já a equipe de
direção de arte exalta o caos ao compor os detalhistas cenários internos,
espaços peculiares, mas estranhamente habitáveis que ajudam a ampliar a sensação
de que algo está errado. Com uma montagem vibrante, potencializada pela
enervante trilha sonora de Howard Shore, Scorsese é astuto ao traduzir o choque
de realidade de Paul, ao extrair o humor do desconforto. Mesmo nas ambientações
mais herméticas, ele move a sua câmera com enorme fluidez, evidenciando a
ironia fina dos diálogos ao investir ora em criativos planos conjuntos, ora em
fechados enquadramentos individualizados. Diante de inúmeros predicados
técnicos e narrativos, Depois de Horas é um trabalho inquieto e irreverente com
a assinatura do mestre Martin Scorsese.
- Cassino (1995)
Tema recorrente na sua filmografia, Martin Scorsese expõe o submundo do
crime organizado com glamour e violência no envolvente Cassino. Em quase três
horas, o realizador voltou a se "encantar" pela face mais amoral da
máfia numa história de amor, ambição, poder e infidelidade. Embora não seja tão
impactante quanto o grande trabalho de Scorsese dentro do gênero, o
extraordinário Os Bons Companheiros (1990), o longa fascina ao mostrar as
consequências da vida no crime sob um prisma íntimo e mais irônico. Encantado
pelas falhas e pelas nuances sentimentais dos seus personagens, o diretor
esbanja propriedade ao construir a ascensão e a queda de dois amigos
completamente diferentes, o cerebral 'bookmaker' Sam (Robert De Niro) e o
irritadiço gangster Nick (Joe Pesci). Fazendo um primoroso uso do recurso da
narração, Scorsese brilha ao pintar um expressivo relato sobre a máfia dos
cassinos em Las Vegas nos anos 1970 e 1980, expondo a violência, a sede pelo
poder e a ação escusa dos governantes enquanto desenvolve os seus dois
polarizados protagonistas. De um lado temos um homem que cresceu pelo seu
talento, conquistou a confiança dos mafiosos da sua região e foi o escolhido
para comandar um dos cassinos mais rentáveis de LA. Do outro um gangster
"raiz", um tipo feroz e agressivo que chegou ao topo na base da
força.
Sem economizar na violência, Scorsese transita habilmente entre o
glamour e a realidade, entre o charme e a degradação, criando um interessante contraste
ao revelar a sujeira por trás da opulência visual de Las Vegas. O foco, porém,
não está ação da máfia, nem tão pouco na investigação policial, mas no impacto
da ganância na rotina destes dois velhos parceiros. Como de costume na sua
filmografia, Scorsese dá uma verdadeira aula na construção dos personagens,
estreitando os laços e evidenciando os crescentes conflitos entre eles com
extrema coesão narrativa. Uma relação instável potencializada pela presença do
furacão Ginger, uma figura magnética que surge como a alma da película.
Impulsionada pela soberba performance de Sharon Stone, a fogosa esposa do Sam
aquece a trama ao não só expor o pior e o melhor dos protagonistas, como também
ao evidenciar a deterioração humana em meio ao caos urbano, realçando o aspecto
mais imprevisível da trama ao render um explosivo triângulo amoroso. Dito isso,
com a dobradinha Pesci\De Niro distribuindo 'fucks' em grande estilo, Cassino
sintetiza o poder do cinema de Martin Scorsese ao propor um recorte passional e
extremamente autoral sobre o crime organizado em uma Las Vegas regida pelo
poder do capital.
- A Invenção de Hugo Cabret (2012)
Primeira investida de Martin Scorsese no universo infantil, A Invenção
de Hugo Cabret comprova porque o diretor é considerado um dos melhores de todos
os tempos. Numa grande homenagem a magia proporcionada pelo cinema, o veterano surpreendeu
ao tirar do papel um trabalho para todas as idades, repleto de sensibilidade e
encanto. Uma adaptação bem conduzida, que, mesmo com um ritmo mais lento do que
o esperado, causou um inegável fascínio ao se revelar um poético tributo a um
dos pilares da Sétima Arte, o visionário George Meliés. Por trás da lúdica
aventura envolvendo um jovem em busca do paradeiro do seu querido pai, Scorsese
reafirmou a universalidade da sua arte ao promover uma fascinante ode ao legado
do homem por trás da "fantasia cinematográfica". Com personagens
cativantes, um roteiro repleto de sensibilidade e um refinamento estético
poucas vezes replicado desde então, Scorsese contornou o descompasso rítmico
inicial ao se encantar pela jornada do pequeno Hugo, mostrando a sua face mais
terna e sensível numa produção genuinamente emocionante. Uma produção mágica e
imersiva que, graças ao prestígio do legendário diretor, se mostrou capaz de
resgatar a inocência perdida numa indústria que cada vez mais prioriza o lucro
em detrimento da originalidade. Em tempo, só mesmo um mestre como Martin
Scorsese para "pensar" o 3-D de maneira tão criativa e expressiva, um
dos poucos realizadores a tornar este recurso realmente relevante para a
experiência fílmica.
Menção Honrosa
- Cabo do Medo (1991)
Frequentemente vilanizados, os remakes, quando bem idealizados, podem
render ótimas produções. Martin Scorsese que o diga. Vencedor do Oscar de
Melhor Direção com o fantástico Os Infiltrados (2006), refilmagem do cult
asiático Conflitos Internos (2002), o veterano já havia utilizado esta fórmula
com sucesso anteriormente no sufocante Cabo do Medo (1991). Com Robert De Niro
no auge da sua forma física e técnica na pele do insano Max Cady, Scorsese
mostrou a sua versatilidade ao potencializar o suspense e a violência do longa
original, o igualmente memorável Círculo do Medo (1962). Além de
"modernizar" o argumento, o diretor procurou realçar a imperfeição
dos seus personagens ao narrar as desventuras de um advogado atarefado (Nick
Nolte) que, após perder uma ação criminal, vê a sua família entrar na vingativa
rota de mira de um violento ex-presidiário. Impulsionado pela assustadora
performance de De Niro, Scorsese instiga ao construir a crescente atmosfera de
tensão e o efeito Max dentro de uma família nada funcional. Indo além do
suspense pelo suspense, o longa se preocupa em solidificar os arcos dos
personagens, principalmente da espevitada filha vivida pela então estrela em
ascensão Juliette Lewis, reforçando o aspecto mais desesperador da trama ao
capturar a impotência de um pai\marido diante de uma figura genuinamente
perigosa. O resultado é um dos grandes representantes do gênero da década de
1990, um filme nervoso e envolvente que culmina num dos últimos atos mais nervosos
da carreira de Martin Scorsese. Uma aula de cinema e de construção da tensão.
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Um comentário:
Detesto filmes de Scorsese.
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