terça-feira, 27 de junho de 2017

Loving

Uma verdadeira história de amor

Quem me acompanha aqui no Cinemaniac sabe que eu sou um grande fã do versátil diretor Jeff Nichols. Uma das vozes mais autorais e relevantes da nova geração em Hollywood, o norte-americano transita entre os gêneros com enorme desenvoltura, o que tem se tornado evidente na sua multifacetada filmografia. Um exímio contador de histórias, Nichols é o tipo de realizador que se encanta pela natureza humana dos seus personagens, pela pureza dos sentimentos, independente do gênero em que o filme esteja inserido. Foi assim no thriller dramático Separados Pelo Sangue (2007), no suspense psicológico O Abrigo (2011), no romance aventureiro Amor Bandido (2012), no Sci-Fi Destino Especial (2016) e no seu mais recente trabalho, o dramático Loving (2016). No projeto mais maduro da sua carreira, Nichols entrou no radar da Academia com um relato comedido sobre uma revoltante história real, um filme elegante e extremamente sensível sobre a faceta mais suja do preconceito racial. 



Com roteiro assinado pelo próprio Jeff Nichols, Loving triunfa ao tratar os protagonistas como pessoas comuns. Embora inspirado em fatos decisivos para a mudança dos direitos civis dos negros nos EUA, o argumento em nenhum momento os enxerga como heróis ou símbolos de resistência. Mais do que criar rótulos, o realizador se preocupa em expor descriminação no interior da América, em mostrar os obstáculos de um casal inter-racial numa região em que o casamento entre negros e brancos era considerado um crime. Fazendo um primoroso uso do silêncio, Nichols esbanja sensibilidade ao realçar o desconforto de Mildred (Ruth Negga) e Richard Loving (Joel Edgerton), ao revelar a faceta mais pura do amor entre os dois. Com enquadramentos belíssimos e uma condução naturalmente intimista, ele se preocupa em mostrar a cumplicidade, a devoção mútua e o forte senso de proteção presente na relação, sentimentos traduzidos de maneira condizente com a conduta dos personagens e o contexto em que eles estavam inseridos. O romantismo, aqui, não está num beijo passional, nem tão pouco num gesto açucarado. Na verdade, enquanto o introspectivo marido "fala" através da sua expressão, das suas atitudes, a determinada esposa toma as rédeas da situação na hora H, se tornando o porto seguro nos momentos mais delicados. O resultado é uma relação marcada pelo companheirismo, uma verdadeira história de amor capturada com maestria pelas lentes de Jeff Nichols.


Outro ponto que agrada, e muito, é a capacidade do realizador em alterar o tom da película sem perder o senso de coesão narrativa. Num primeiro momento, Loving se revela um drama com toques de suspense. Sem nunca apelar para a violência gratuita ou para o puro maniqueísmo, Jeff Nichols é cuidadoso ao evidenciar o olhar de estranhamento dos moradores da região, inclusive dos próprios negros, para este relacionamento inter-racial. Ao longo do insinuante primeiro ato, inclusive, o realizador é cuidadoso ao realçar o clima de tensão em torno do casal, ao consolidar a sensação de perigo iminente, culminando numa revoltante sequência. A realidade era dura e Nichols faz questão capturar a rotina dos dois sob o ponto de vista mais verossímil possível. Para isso, aliás, ele se apoia em dois elementos realmente interessantes. O primeiro, obviamente, é a avermelhada fotografia de Adam Stone, naturalmente soturna nos momentos mais sombrios dos dois.


O segundo fica para o criativo uso dos ruidosos efeitos sonoros, decisivos na construção do clima de desconforto enfrentado pelo casal. Curiosamente, porém, na transição para o segundo ato o longa ganha uma aura bem mais amena. Acompanhando as transformações sociais da década de 1950, Nichols é habilidoso ao tornar esta transição completamente harmoniosa, permitindo que o público compreenda os vagarosos avanços sem esquecer dos perigos que (ainda) os cercavam. Embora o foco esteja no fator humano, o roteiro é inteligente ao abordar também as questões políticas, os bastidores de uma emblemática batalha jurídica, realçando não só o clima de otimismo e a comoção midiática em torno do casal, como também a absurda irresponsabilidade dos agentes por trás desta "empreitada". Uma abordagem macro que talvez explique o ótimo ritmo da película, um fato raro dentro das produções do gênero.



O grande trunfo de Loving, porém, reside nas magníficas performances do casal Ruth Negga e Joel Edgerton. Oriunda da série Marvel Agents of Shield, a atriz etíope encanta ao criar uma mulher forte e resiliente, uma figura consciente capaz de enxergar o otimismo em meio ao ódio. Com um olhar sempre expressivo e muita energia cênica, Negga torna a indignação da sua Mildred acessível aos olhos do público ao criar uma figura materna simples que reluta em criar os seus filhos longe das suas raízes. Indo de encontro à sua comunicativa "esposa", Joel Edgerton surge em cena praticamente irreconhecível. Com um visual quase albino e uma performance rígida, o talentoso ator australiano é o radar do casal, uma figura sempre na defensiva que não consegue enxergar um horizonte pacífico para os dois. Num trabalho realmente difícil, ele brilha ao exprimir as emoções do seu Richard sem precisar de muitas falas, nos brindando com um tipo zeloso e dedicado. Um homem pacato obrigado a enfrentar uma realidade totalmente distante da sua etnia. Ao longo dos dois primeiros atos, inclusive, Jeff Nichols opta por uma abordagem mais comedida\repressiva, extraindo o máximo do talentoso casal em diálogos "silenciosos" e intimistas planos sequência. Num todo, aliás, o elenco de apoio cumpre a sua função sem grandes dificuldades, com destaque para o odiável policial interpretado por Marton Csokas e o simpático jornalista vivido pelo excelente Michael Shannon. O único senão narrativo, inclusive, fica pelo pouco espaço dado aos coadjuvantes, já que personagens como a relutante mãe de Richard e a inconformada irmã de Mildred surgem com conflitos que poderiam ser melhor desenvolvidos.


Recheado de momentos visualmente belos, Loving, como o próprio título sugere, fascina ao exaltar o amor por trás de um cenário recheado de ódio e preconceito. Indo de encontro aos geralmente solenes filmes do gênero, Jeff Nichols abre mão do teor reverencial ao realçar o elemento humano presente neste relato real, mostrando que pessoas comuns também podem protagonizar grandes histórias. E se você gosta do tema, confira a nossa lista com outros cinco filmes importantes sobre as tensões raciais nos EUA. 

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