Uma bomba para qualquer fã de cinema, a aposentadoria do ator Daniel
Day-Lewis é uma daquelas notícias que a gente torce para ser desmentida.
Segundo a informação da Variety, a derradeira produção do ator será Phantom
Tread, o seu último trabalho com o diretor e velho parceiro Paul Thomas
Anderson. De acordo com o representante do ator, Leslee Dart, Lewis "está
imensamente grato com todos os colaboradores e o fãs que o acompanharam ao
longo dos anos. É uma decisão privada e nem ele, nem seus representantes farão
qualquer comentário futuro sobre o assunto". Dono de três estatuetas do
Oscar, Daniel Day-Lewis fez parte de uma safra rara de realizadores. Ele é do
tipo que prefere a qualidade à quantidade. Com um apurado faro para grandes
personagens e uma filmografia singular, o recluso ator construiu o seu legado
sem precisar apelar para a mídia, para o rótulo estrelar. O seu status veio
única e exclusivamente do seu trabalho, da sua máxima dedicação e das suas
elogiadas produções. Para celebrar a carreira deste verdadeiro monstro da arte
de atuar, neste Cinco Filmes iremos lembrar de alguns dos grandes filmes da sua
carreira, uma missão dificílima tendo em vista o elevado padrão de qualidade da
sua obra.
Numa performance capaz de transcender as barreiras da atuação, Daniel
Day-Lewis colocou o seu nome na história da sétima arte no primoroso drama Meu
Pé Esquerdo. Dando vida ao artista irlandês Christy Brown, um pintor e escritor
com uma severa paralisia cerebral, o então promissor ator britânico arrebatou o
público e a crítica com um desempenho único, um trabalho repleto de
fisicalidade e expressão. Mais do que simular a atrofia do biografado, Lewis
criou uma espantosa conexão com o seu personagem. O ator conseguiu interiorizar
os sentimentos do artista, o misto de dor, esperança e criatividade presente na
sua rotina diária, tornando a genialidade do retratado evidente aos olhos do
público. Imerso no personagem, Lewis exibiu a sua reconhecida intensidade ao
traduzir as emoções de Christy, ao torna-las completamente únicas e pessoais.
Com um material vasto em mãos, ele se aprofundou como poucos na psique do
complexo pintor, na maneira com que ele expressava a dor, a raiva, a
felicidade, a esperança e o afeto, dando uma conotação própria a cada um destes
sentimentos. Na verdade, reconhecido por suas metódicas atuações, Daniel
Day-Lewis se dedicou ao máximo para absorver os trejeitos de Christy, o seu
característico modo de se comunicar. Durante o processo de pré-produção e as
filmagens, inclusive, o ator assumiu a cadeira de rodas, a movimentação
involuntária do personagem, o que lhe rendeu duas costelas fraturadas e uma
representação estupenda das limitações do escritor. O resultado é uma performance singular capaz de capturar a personalidade deste inspirador artista
com um grau de intimidade poucas vezes visto no cinema.
Conduzido com enorme sensibilidade por Jim Sheridan, o primeiro grande
parceiro de Daniel Day-Lewis, Meu Pé Esquerdo é brilhante ao construir este
sincero drama familiar. Sob um prisma abrangente, o realizador não só se
encanta pela figura de Christy, como também pelos pais do artista, o “casca
grossa” de bom coração Srº Brown (Ray McAnally, impecável) e a dedicada Srª
Brown (Brenda Fricker, extraordinária). Com uma condução genuinamente
intimista, Sheridan é cuidadoso ao revelar tanto o fardo inicial e as
incertezas dos Brown acerca do futuro de Christy, quanto o cativante processo
de criação e a dinâmica desta humilde família irlandesa. Somado a isso,
Sheridan cativa ao investigar a estreita relação entre Christy e os seus
queridos pais, ao revelar os altos e baixos em torno do trio, uma relação
humana arquitetada com extrema delicadeza ao longo da película. Sem querer
revelar muito, a Srª Brown é uma figura incrível, uma mulher dedicada e
atenciosa que rouba a cena com diálogos memoráveis. "Um corpo ferido não é
nada perto de um coração partido", diz a preocupada mãe ao perceber o
encantamento do filho pela sua médica, a Drª Eileen Cole (Fiona Shaw). Até em
cima disso, aliás, é interessante ver o esmero de Sheridan ao revelar as
desilusões amorosas de Christy, um arco pessoal que diz muito sobre a
personalidade do pintor e a sua incessante busca por um romance. Dito isso, com
uma fotografia elegante, uma montagem extremamente fluída e um elenco no auge
da sua forma, Meu Pé Esquerdo fascina ao desvendar o homem por trás da sua
obra, ao revelar a trajetória de um pintor\escritor que superou as suas
limitações ao conseguir "domar a sua arte" e trilhar o seu próprio
caminho.
- O Último dos Moicanos (1992)
Um velho artesão na arte do cinema, Michael Mann apontou a sua mira para
o coração da América no épico O Último dos Moicanos. De longe uma das produções
mais imponentes da década de 1990, o longa estrelado por Daniel Day-Lewis e
Madeleine Stowe ultrapassou as barreiras do gênero ao usar a Colonização
Americana como o pano de fundo para uma história de amor e vingança. Um dos
raros projetos hollywoodianos sobre a situação dos nativos americanos no centro
deste conflito, o filme é primoroso ao escancarar a degradação moral e cultural
das tribos. Apesar de trazer um homem branco no papel do protagonista, uma
artimanha comercial, diga-se de passagem, bem explicada pelo roteiro, Mann
esbanja categoria ao expor os agentes por trás das atitudes dos personagens.
Embora pintado como o vilão, o obcecado Magua (Wes Studi) surge com motivações
realmente sólidas. Mais do que criar figuras unidimensionais, o longa é
cuidadoso ao mostrar os dois lados da moeda, ao revelar a ardilosa influência
europeia no modo de vida dos nativos, indo de encontro aos mais enraizados
clichês do gênero ao mostrar os indígenas como parte integrante do conflito.
Uma peça chave nos planos de ingleses e franceses. O Último dos Moicanos,
porém, em nenhum momento se reduz ao contexto bélico.
Também responsável pelo envolvente roteiro, Michael Mann brilha ao
utilizar a guerra como o pano de fundo para uma história bem mais íntima e
singular. Inspirado no clássico homônimo do escritor James Fenimore
Cooper, o realizador norte-americano é sutil ao construir o caso de amor entre
um "adotado" moicano (Lewis) e a filha de um importante general
(Stowe). Com um excelente senso de simultaneidade, Mann consegue não só
desenvolver a repentina relação dos dois, como também se debruçar sobre as
consequências desta história de amor, um arco íntimo que se mistura
harmoniosamente com as agressivas cenas de ação e com o conflito em questão.
Poucas vezes, aliás, a guerra entre os colonizadores foi tão bem narrada em
Hollywood. Reconhecido pelo seu rigor técnico, Michael Mann não poupou esforços
ao tornar o cenário o mais verossímil possível. Sem medo de "sujar"
as mãos, ele levou as filmagens para o coração da Carolina do Norte e construiu
um set de filmagens de fazer inveja a qualquer grande realizador da velha
geração. Impulsionado pela expansiva fotografia selvagem de Dante Spinotti,
Mann exibe o seu vasto repertório ao nos brindar com sequências engenhosas,
momentos memoráveis como o noturno plano panorâmico nas trincheiras francesas,
o gigantesco ataque Mohawk às tropas inglesas ou então a expressiva cena de
fuga em baixo do "lençol" de uma cachoeira. Uma bela maneira de se
usar as paisagens naturais. No embalo da inesquecível trilha sonora da
dupla Randy Eldman\Trevor Jones e das magníficas atuações do dedicado elenco,
capitaneado por um "indomável" Daniel Day-Lewis, O Último dos
Moicanos é um filme cada vez mais raro em Hollywood. Uma produção singular, de
grandes proporções, mas que em nenhum momento esquece de valorizar o que
realmente importa: o poder de uma comovente história.
- Em Nome do Pai (1993)
Sob a batuta do sensível e engajado Jim Sheridan, Em Nome do Pai é um
relato intimista sobre uma desoladora história real. Como de costume na sua
filmografia, o realizador irlandês joga uma luz sobre o IRA (o Exército
Republicano Irlandês) ao acompanhar a desventurada jornada da família Conlon.
Impulsionado pela magnífica performance de Daniel Day-Lewis, impecável ao
traduzir o processo de amadurecimento do seu personagem em um ambiente
naturalmente opressor, o longa segue os passos do rebelde Gerry Conlon, um
jovem arredio que é injustamente acusado de um atentado a um pub. Mesmo sem
qualquer ligação com a organização, ele é preso e condenado a prisão perpétua,
para o desespero do seu devotado pai, o bondoso Giuseppe Conlon (Pete
Postlethwaite). Convicto da inocência do filho, ele resolve questionar a
policial local, mas acaba preso por associação criminosa. Revoltado com a
detenção do seu pai, Gerry decide se insurgir contra o sistema, atraindo a
atenção da advogada Gareth Peirce (Emma Thompson), uma determinada mulher
disposta a expor as irregularidades por trás da condenação dos dois.
Muito mais do que um drama político, Em Nome do Pai é um relato
comovente sobre o amor entre um pai e o seu filho. Por mais que o roteiro
explore com propriedade o contexto judicial e revele o autoritarismo em torno
da condenação dos dois, Jim Sheridan mostra a sua reconhecida maturidade ao se
encantar pelo fator humano. Com uma direção intimista, o diretor irlandês é
cuidadoso ao construir o processo de amadurecimento de Gerry, uma jornada árdua
marcada pela injustiça, pela tortura e pela repentina reaproximação com o seu
pai. Através de diálogos marcantes e sequências sentimentais, Sheridan mostra
sensibilidade ao se debruçar sobre esta estremecida relação familiar, ao expor
a influência desta serena figura paterna na metamorfose do filho, um arco
potencializado pela magnífica atuação do subestimado Pete Postlethwaite. Além
de expor a violência e a dor dos dois personagens, o argumento é cuidadoso ao
revelar não só a conexão entre Gerry e uma célula do IRA na prisão, como também
os bastidores desta batalha jurídica, nos fazendo experimentar o gradativo senso
de urgência em torno da luta de Gerry e Giuseppe por justiça. Em suma, com uma
direção elegante mesmo num cenário claustrofóbico, um arco familiar recheado de
nuances e um argumento capaz de mexer com as emoções do espectador, Em Nome do
Pai se revela um drama completo, uma obra sólida e envolvente marcada por
diálogos intensos, atuações impactantes e um clímax genuinamente libertador. E
que cena final!
- Sangue Negro (2007)
Talvez o filme mais visceral da carreira de Daniel Day-Lewis, Sangue
Negro é um enérgico drama familiar. Um relato épico à moda antiga, mas narrado
dentro de um contexto inegavelmente moderno. Ao longo dos imersivos 160 minutos
de película, o refinado Paul Thomas Anderson nos brinda com uma história sobre
ganância, religião, degradação moral e decadência. Indo além da monstruosa
atuação de Lewis, brilhante na pele de um impetuoso desbravador, o longa
surpreende ao introduzir o excelente Paul Dano, magnífico na pele de um pastor
influente e ardiloso capaz de expor a faceta mais venal das instituições
religiosas. Através desta inusitada relação, Anderson desfila a sua genialidade
ao transitar por temas naturalmente complexos, os descortinando com crueza e
inegável contundência. Na verdade, o realizador transforma o impetuoso Daniel
Plainview numa espécie de símbolo, o homem por trás do mito do sonho americano.
A realidade, entretanto, aqui é mostrada em sua mais nefasta forma. Sangue e
petróleo se misturam numa jornada em busca do poder e da riqueza. Não há lei,
nem tão pouco ética. E o roteiro é brilhante ao traduzir a deterioração física
e emocional do ex-minerador neste "universo" corrosivo.
Nem só de aridez, porém, vive esta emblemática história. Em meio à
questões tão vis, o roteiro é sutil ao investigar também o lado mais humano de
Daniel, a sua delicada relação com o filho H.W. (Dillon Freasier), permitindo
que o espectador enxergue as múltiplas facetas deste complexo personagem. O
pior e o melhor de uma figura capaz de tudo para alcançar os seus objetivos. É
preciso salientar, no entanto, que Sangue Negro não é um filme
"fácil" de se assistir. Embora objetivo e extremamente universal,
Paul Thomas Anderson não poupa o espectador ao escancarar as consequências por
trás desta espiral de ambição e loucura, culminando numa sequência final
explosiva, brutal e totalmente condizente com as atitudes dos personagens. Um
desfecho impactante para uma obra impressionante. Um longa que, como se não
bastassem os inúmeros predicados narrativos, se revela ainda uma película
tecnicamente irretocável, um trabalho potencializado pela elegante condução de
PTA, pela suja e expansiva fotografia de época de Robert Elswit (Atração
Perigosa) e pela fantástica direção de arte.
- Lincoln (2013)
Após trabalhar com nomes como Jim Sheridan, Michael Mann, Martin
Scorsese e Paul Thomas Anderson, Daniel Day-Lewis resolveu se distanciar dos
holofotes. Longe dos sets de filmagem após o lançamento do musical Nine (2009),
o ator relutou em aceitar o convite de Steven Spielberg, que se viu num grande
dilema após a saída de Liam Neeson do projeto. Acostumado a não
"enfileirar" trabalhos, Lewis pediu um ano de espera, tempo
prontamente respeitado pelo realizador norte-americano. Melhor para nós espectadores
que, mais uma vez, pudemos presenciar mais um show do astro Daniel Day-Lewis.
Na pele de uma das figuras públicas mais populares da história, o ator
simplesmente “desaparece” em cena ao viver este icônico político. Num complexo
estudo de personagem, Lewis exibe o seu dedicado detalhismo ao dar corpo a esta
imponente figura. Numa performance extremamente física, ele fala de um modo particular,
anda de um modo particular, exprime as suas emoções de um modo particular. Nada
ali remete ao sempre intenso Daniel Day-Lewis. Com uma postura quase sempre
curvada, um andar vagaroso e um sereno modo de se expressar, o dedicado ator
consegue não só realçar a dor de Lincoln e o seu sofrimento diante da violenta
Guerra da Secessão, como também a esperança dele na luta pelo fim da escravidão
nos EUA. Sob a imperceptível batuta de Spielberg, Lewis ganha a liberdade
necessária para nos fazer enxergar o homem por trás do mito, e consequentemente
compreender os motivos que o transformaram numa grande fonte de inspiração para
o povo americano. Uma performance magnífica que rendeu a Daniel Day-Lewis o seu
terceiro Oscar de Melhor Ator.
Nem só de Lewis, porém, vive o excelente Lincoln. Embora haja
contestações em torno da precisão história do longa, um fato bem comum no
gênero, Steven Spielberg exibe a sua reconhecida sensibilidade ao se debruçar
sobre um dos momentos mais memoráveis da política norte-americana. Num primeiro
momento, o roteiro assinado por Tony Kushner é perspicaz ao narrar o jogo
político por trás da aprovação da 13ª Emenda. Comprovando que os tempos passam
e as "artimanhas" públicas não mudam, o argumento faz questão de
expor o amoral 'modus operandi' em torno da aprovação de tal lei, evidenciando
com clareza o 'lobby', a compra de votos e a corrupção por trás de um projeto
tão decisivo. Isso é política, seja para o bem ou para o mal. Outro ponto que
agrada, e muito, é a maneira com que o filme trata a causa Negra. Fazendo um
primoroso uso da retórica, Lincoln não só põe o dedo na ferida ao realçar não só
a injustiça histórica quanto ao papel do negro na sociedade americana, como algumas
questões raciais que só viriam a se tornar recorrentes quase um século depois
da abolição. Sem querer revelar muito, a sequência em que o presidente e a dama
de honra (Gloria Reuben) da sua esposa (Sally Field) discutem o futuro dos
ex-escravos numa América "igualitária" é magnífica, um momento
sincero que diz muito sobre as incertezas e os obstáculos enfrentados pelos
negros nos anos seguintes.
Com o avançar da trama, aliás, Spielberg é igualmente habilidoso ao se
voltar também para a faceta mais íntima de Abraham Lincoln. Sem nunca perder o
foco da trama, o papel do presidente na Abolição da Escravatura, o diretor
esbanja sutileza ao costurar as questões familiares ao pano de fundo político,
nos brindando com momentos marcantes. No melhor deles, Lewis e Field expõem os
“fantasmas” do presidente e da primeira dama numa sequência naturalmente densa.
Por falar no elenco, Spielberg tira o melhor dos seus qualificados "comandados",
dando a nomes como Tommy Lee Jones, James Spader, Lee Pace e David Strathairn a
chance de brilhar através de personagens muito bem escritos. Contando ainda com
inúmeros predicados estéticos, vide a espetacular direção de arte, a sóbria
fotografia iluminada de Janusz Kaminski e os impecáveis figurinos de época,
Lincoln reforça o mito em torno do décimo sexto presidente dos EUA sem esquecer
de investigar a sua face mais intima. Num trabalho extremamente sofisticado,
Steven Spielberg é perspicaz ao traduzir a imponência imagética do biografado,
ao mostra-lo com um verdadeiro símbolo de justiça e igualdade, uma abordagem
solene (reparem na maneira com que o diretor explora a popular silhueta do
personagem) humanizada pela estrondosa performance de Daniel Day-Lewis. Um dos
poucos a conseguir encarar uma figura deste porte.
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