Ecos da crise americana
Voraz e incisivo, A Qualquer Custo coloca o dedo na ferida ao revelar a derrocada dos maiores símbolos americanos. Numa cartada de mestre, o diretor David Mackenzie escolhe um gênero reconhecidamente 'yankee', o popular Western, para construir uma áspera critica envolvendo o impacto da crise financeira no antigo "coração" dos EUA. Sob um prisma atual e extremamente melancólico, o realizador escocês mostra propriedade ao não só traduzir os efeitos do capitalismo predatório no interior da América, como também ao expor a faceta mais retrógrada desta região, indo além das expectativas ao propor um panorama que diz muito sobre atual cenário politico norte-americano. Com um texto cínico e reflexivo em mãos, Mackenzie adota uma abordagem amoral ao narrar a jornada de dois irmãos que resolveram se insurgir contra o sistema, encontrando no meio do caminho as brechas necessárias para voltar a sua mira para temas espinhosos, entre eles o preconceito velado, a opressão das instituições financeiras e a banalização da violência. O resultado é uma obra completa, um filme tecnicamente impecável e socialmente implacável.
Com roteiro assinado por Taylor Sheridan, reconhecido pelo excelente suspense Sicario: Terra de Ninguém, A Qualquer Custo oferece uma visão pessimista sobre uma parcela da população norte-americana que perdeu a sua voz. Antes cenário de algumas das maiores epopeias de Hollywood, o oeste se tornou um palco de glórias passadas, um lugar "esquecido" dentro de uma América mais cosmopolita. Lógico que é complicado tentar traçar um paralelo com a atual conjuntura política do país, mas o fato é que, guardada as devidas proporções, o longa fala justamente sobre este americano, sobre os homens e mulheres que parecem ter perdido o seu lugar dentro da "Terra das Oportunidades". Um relato oportuno, feroz e relevante que nos faz compreender, até mesmo, os motivos em torno da ascensão de um nome como Donald Trump. E este, diga-se de passagem, talvez seja o primeiro grande mérito desta magnífica película. A partir de uma premissa essencialmente cinematográfica, Sheridan mostra propriedade ao direcionar a sua atenção para o cidadão comum, para os seus dilemas e anseios, tornando a decadência e a crise financeira parte integrante da jornada dos irmãos Tanner (Ben Foster) e Toby Howard (Chris Pine). Na trama, reunidos após a morte da mãe, os dois resolvem se rebelar contra o banco que estava prestes a executar a hipoteca do rancho da família. Ciente dos interesses escusos por trás desta negociação, eles iniciam uma série de assaltos contra as agências desta instituição financeira, acreditando que com isso conseguiriam pagar as dívidas e recuperar o controle da fazenda. Não demora muito, porém, para a dupla chamar a atenção do veterano Marcus Hamilton (Jeff Bridges), um xerife provocador que resolve tratar o caso como a sua última missão antes da aposentadoria.
Impulsionado por esta instigante premissa, David Mackenzie abraça o viés crítico do excelente roteiro ao realçar os problemas socioeconômicos em torno deste árido cenário. Num contexto mais óbvio, o realizador é contundente ao voltar a sua mira para as instituições financeiras, que, aqui, são as grandes antagonistas do longa. Embora o argumento não se aprofunde tanto na ação predatória dos grandes bancos, o realizador mostra perspicácia ao não só desvendar os motivos por trás da drástica atitude dos dois protagonistas, como também ao abrir pequenas brechas para os desgastados personagens de apoio, figuras comuns que ajudam a elucidar o tamanho da crise financeira nesta região. Além disso, Mackenzie é virtuoso ao utilizar o deteriorado cenário texano como a evidência máxima do abandono enfrentado por esta parcela da população. Nas entrelinhas, inclusive, ele faz questão de evidenciar as tentadoras ofertas bancárias\imobiliárias, mensagens que surgem via 'outdoors' adicionando ainda mais significado as cenas. Um recurso valorizado pela imersiva condução do diretor escocês, inteligente ao trazer estes elementos incidentais para o centro da trama.
Os questionamentos presentes em A Qualquer Custo, porém, não param por ai. Através de diálogos irônicos e geralmente ácidos, David Manckenzie não se faz de rogado ao investigar também os indivíduos que compõem este cenário, escancarando o enraizado preconceito envolvendo as minorias (entenda indígenas e mexicanos) e a banalização da violência possibilitada pela lei do porte de armas. Com um afiado e inesperado senso de humor, o diretor permite que estes temas se juntem à trama com enorme naturalidade, provocando o espectador ao entregar sequências ora politicamente incorretas, ora puramente viscerais. Sem querer revelar muito, a brutalidade é aqui explorada em forma de crítica, se tornando uma peça chave dentro do imprevisível último ato. Em meio a tantos questionamentos, porém, Mackenzie é particularmente cuidadoso ao traduzir a derrocada de alguns dos maiores símbolos americanos. O caubói, por exemplo, surge desgostoso e frustrado, "fugindo com o seu gado em pleno século XXI". Já os populares carros americanos são descartados, enterrados como a prova de um crime, numa possível alusão à tão criticada terceirização do setor industrial. E temos ainda o xerife, uma das figuras mais icônicas do velho-oeste que, aqui, ganha uma roupagem carente e solitária, um americano de raiz esnobado pelo seu parceiro "meio mexicano, meio indígena".
Por falar neles, os singulares personagens são a alma de A Qualquer Custo. Com uma abordagem sucinta e incisiva, o realizador é habilidoso ao introduzir cada um dos protagonistas, ao descortinar as suas histórias e compreender as suas respectivas personalidades, permitindo que o espectador crie uma sincera conexão com os dois lados desta balança. Dentro de um contexto amoral, Mackenzie é sutil ao realçar a fraternidade presente na relação entre Tobby e Tanner, duas figuras opostas unidas por um particular senso de justiça. Mais magro e cerebral, o talentoso Chris Pine absorve o calculismo do seu Tobby com humanidade, brilhando em cena ao se tornar o elo mais ingênuo desta parceria. Indo de encontro ao seu silencioso "irmão", o subestimado Ben Foster entrega mais uma das suas expansivas atuações, adicionando uma generosa dose de instabilidade ao interpretar o explosivo Tanner. Dono de alguns dos melhores diálogos do filme, o ator cria um tipo dúbio e confiante, se impondo em cena ao encarar o arco mais tênue da trama. Quem realmente rouba a cena, no entanto, é o veterano Jeff Bridges. Na pele de um sarcástico Texas Ranger, ele arranca incorretas risadas ao destilar "amistosamente" o seu preconceito contra o paciente Alberto (Gil Birmingham, também ótimo), criando uma parceria sincera e engraçada. Quando necessário, porém, Bridges mostra também uma forte veia dramática, protagonizando três sequências dignas de qualquer grande premiação. Vide a poderosa cena final, um encontro insinuante e recheado de tensão que, à sua maneira, soa como uma homenagem aos clássicos faroestes de Sérgio Leone.
No embalo das ágeis e realísticas sequências de ação, potencializadas pela calorosa fotografia naturalista de Giles Nuttgens, pela nervosa edição\montagem e pelos magnéticos riffs sintetizados da trilha sonora da dupla Nick Cave e Warren Ellis, A Qualquer Custo resgata alguns velhos arquétipos americanos ao construir um 'western' moderno, seco e envolvente. Em suma, David Mackenzie entrega um filme original, com personagens singulares e um texto crítico que tem muito a dizer sobre atual contexto sociopolítico norte-americano.
Obs: A Qualquer Custo tem um trailer sensacional. Uma prévia que merece elogios. Confira aqui.
Obs: A Qualquer Custo tem um trailer sensacional. Uma prévia que merece elogios. Confira aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário