Mel Gibson encontra o "perdão" num drama que se sustenta na
sua poderosa mensagem antibélica
Após dar uma série de polêmicas declarações antissemitas em 2006, Mel
Gibson viu o seu prestígio despencar dentro da indústria de Hollywood. Por mais
que o realizador tenha se mantido ativo na última década, entregando,
inclusive, alguns competentes trabalhos, entre eles o thriller O Fim da
Escuridão (2010) e o drama Um Novo Despertar (2011), o fato é que a estrela de
Coração Valente precisava de um filme do porte de Até o Último Homem para
receber um merecido "perdão". Embora seja o trabalho mais irregular
do realizador por trás das câmeras, o longa estrelado pelo sensível Andrew
Garfield cumpre a sua missão no momento em que decide propor uma visceral
mensagem antibélica. Inspirado numa extraordinária história real, o astro
australiano pesa a mão ao tentar transformar um altruísta herói de guerra numa
figura messiânica, reduzindo o peso de algumas questões mais complexas ao se
prender exageradamente ao pano de fundo religioso. Quando o filme invade as
trincheiras, no entanto, Mel Gibson mostra porque a sua ausência foi tão
sentida, nos brindando com um drama de guerra cru e pacifista que faz jus a
títulos do porte de Sem Novidade no Front (1930) e Glória Feita de Sangue
(1957).
Num primeiro momento, porém, Até o Último Homem patina ao adotar uma
dose de ingenuidade incompatível com a força da sua premissa. Com base nos
incríveis feitos do soldado Desmond Doss, um jovem religioso e obstinado que,
sem precisar pegar em uma arma, salvou 75 vidas durante a batalha de Okinawa, o
oscilante roteiro da dupla Robert Schenkkan e Andrew Knight é falho ao
desvendar os motivos por trás da postura idealista do protagonista. Logo nos
primeiros minutos de projeção, o longa peca pelo reducionismo ao introduzir a
origem da vocação antibélica do personagem, esvaziando um tema promissor ao
aparentemente limita-lo a um sentimento de culpa. Por mais que a cena seja
realmente impactante, o argumento pesa a mão ao trazer o contexto religioso
para o centro da trama, se desviando dos dilemas mais íntimos do jovem. Na
verdade, o problema não está na maneira com que a película apresenta a fé
inabalável de Desmond e a sua aversão ao uso de armas, mas no descuido dos
roteiristas ao revelar os traumas do jovem e os motivos que ajudaram a determinar esta postura. A complexa relação entre o determinado soldado e o seu
agressivo pai, por exemplo, merecia um maior tempo de tela, principalmente por
expor o impacto da violência na rotina do protagonista.
De longe o elemento mais humano da película, o veterano da Primeira
Guerra Mundial surge como um indivíduo moldado pelo conflito, uma figura
atormentada e multidimensional que se torna um dos grandes trunfos dentro do
datado primeiro ato. Em alguns momentos, inclusive, o roteiro até aponta para
as questões mais pessoais envolvendo este complicado relacionamento, mas as
eventuais respostas sobre a personalidade do protagonista são diluídas diante
das pretensões religiosas de Mel Gibson. Uma opção que, diga-se de passagem,
nos leva ao segundo grande equívoco do longa. Embora Andrew Garfield convença
ao traduzir a crença do seu personagem, Até o Último Homem perde força no
momento em que decide atribuir a ele uma aura quase superior. Indo de encontro
do próprio discurso de Desmond Doss, que, por diversas vezes, exige um
tratamento igual aos demais soldados, o diretor força a barra ao ressaltar o
altruísmo, a resiliência e a pureza do jovem militar, criando um herói
unidimensional que em nenhum momento se vê obrigado a expor as suas
fragilidades e inseguranças. Além disso, Gibson flerta perigosamente com o
exagero ao pontuar o acelerado clímax, exibindo o seu particular ponto de vista
ao transformar Desmond numa figura quase messiânica. O que, aliás, talvez
explique alguns dos excessos do roteiro, a maioria deles envolvendo a
onipresença do protagonista dentro do campo de batalha e sua capacidade de
fugir do "radar" dos japoneses.
Menos mal que, mesmo diante de algumas duvidosas opções narrativas, Mel
Gibson mostra a sua velha forma quando o assunto é a construção da mensagem
pacifista. Dentro de um contexto inicialmente inocente, que, à sua maneira, me
fez lembrar o clássico Full Metal Jack (1987), o longa ganha substância ao
reproduzir as barreiras enfrentadas pelo jovem militar dentro do quartel. Ainda
que a relação do protagonista com os seus companheiros de farda seja conduzida
com uma ligeira dose de conveniência, o diretor transita por temas mais maduros
ao revelar o impacto da crença de Desmond na rotina da tropa e dos seus
superiores. Entre brigas superficiais e um interessante debate jurídico, o
argumento aqui é mais cuidadoso ao tratar o personagem como um soldado comum,
um aspirante a médico disposto a servir o seu país sem pegar em uma arma. Até o
Último Homem, porém, se torna um novo filme no momento em que invade as
trincheiras nipônicas. Numa sacada perspicaz, após uma primeira hora ensolarada
e otimista, Gibson esmurra o estômago do espectador ao apresentar a trágica
realidade de uma guerra. Como de costume em sua carreira, o australiano é
visceral ao traduzir a violência do campo de batalha, a sensação de caos e
vulnerabilidade, adotando uma pegada propositalmente 'gore' ao traduzir horror
do confronto. Fazendo um primoroso uso do refinado desenho de som e da pálida
fotografia de Simon Duggan (Eu, Robô), o diretor mostra pleno domínio cênico ao
colocar o público no centro da ação, realçando o fator humano ao traduzir a
deterioração imposta em um ambiente tão hostil. Embora o foco sempre esteja nos
personagens principais, Gibson acerta ao não escolher lados e nem vítimas, ao não exaltar a batalha em si, o
que só potencializa a sua crítica envolvendo a ignorância da guerra.
E como se não bastasse o seu rigor técnico ao compor as implacáveis
sequências de batalha, que, apesar da proposta caótica, em nenhum momento soam
confusas aos olhos do espectador, o diretor é igualmente impecável ao
acompanhar os inestimáveis feitos de Desmond Doss. Indo de encontro ao teor
superficial do primeiro ato, Mel Gibson equilibra religião e altruísmo ao
revelar o esforço hercúleo do protagonista, nos brindando com sequências
humanas, realísticas e coerentes com os fatos. Sem querer revelar muito, a cena
em que ele resgata um militar que acreditava estar cego é de emocionar,
principalmente quando nos deparamos com o arrepiante depoimento dado pelo
verdadeiro Desmond durante as cenas pré-credito. Um mérito que, diga-se de
passagem, precisa ser dividido com Andrew Garfield. Apesar das exageradas
intenções de Mel Gibson atrapalharem, o talentoso ator inglês é sutil ao tornar
crível a vocação antibélica do seu personagem. Em alguns momentos, inclusive, o ator compensa a falta de qualidade do roteiro quanto às
questões mais íntimas, adicionando peso a alguns dos protocolares diálogos. Além disso, Garfield exibe uma ótima química com a magnética Theresa Palmer,
dando vida a uma singela história de amor que funciona dentro da sua proposta.
O mesmo, aliás, acontece com o restante do elenco, que, mesmo sem brilhar,
cumpre a sua função sem maiores dificuldades. Na verdade, o único que acompanha o desempenho de Andrew Garfield é o talentoso Hugo Weaving, magnífico
ao capturar o misto de instabilidade e degradação do seu marcante personagem.
Numa escalação no mínimo original, aliás, o carismático Vince Vaughn também
merece elogios, se revelando um pontual alívio cômico ao interpretar um
verborrágico sargento.
Ora burocrático, ora contundente, Até o Último Homem é um drama recheado
de contrastes que marca a redentora (e bem-vinda) volta de Mel Gibson aos
holofotes de Hollywood. Usando a violência para questionar a violência, o
realizador australiano realmente pesa a mão ao tentar transformar o
protagonista numa figura quase "messiânica", mas compensa no momento
em que decide abraçar a relevante mensagem antibélica por trás dos incríveis
feitos de Desmond Doss. O resultado é uma obra que, após uma primeira metade
formulaica, ganha uma hora final realmente impactante, uma explosão de dor e
caos que só um realizador com a coragem de Gibson poderia tirar do papel.
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