quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Crítica | "O Beco do Pesadelo" rompe com a narrativa clássica ao enxergar o horror na monstruosidade humana


O que faz uma refilmagem acontecer? Um remake, para mim, precisa ter ideias próprias. Um remake precisa se emancipar na relação com o original. Um remake não pode se contentar com a simples "atualização". São poucos os que conseguem isso. Não à toa, a "moda" hoje são as populares 'requels'. Uma conveniente mistura de refilmagem com sequência pensada para apresentar o material fonte para uma nova geração. Poucos cineastas mergulham de fato no texto original de obras consagradas dispostos a extraírem algo autêntico delas.


Guillermo Del Toro, felizmente, é a exceção da regra. É fascinante ver o que o realizador faz em "O Beco do Pesadelo". Ele não tem pressa em assumir o controle sobre a sua versão do remake. Ele, só aos poucos, rompe com a narrativa clássica do ousado thriller noir de 1947 ao trocar o monstro no fundo da garrafa pelo monstro no fundo da alma. E ninguém entende de monstros como Del Toro...

Com apego aos signos de uma Hollywood clássica, o diretor é cuidadoso ao estabelecer os motivos em torno da refilmagem. Antes de impor a sua assinatura enquanto autor, ele mergulha na rotina dos circos itinerantes dos anos 1940 na busca pela imersão. A paciente construção narrativa é parte da quebra de expectativa criada. "O Beco do Pesadelo" não se apressa ao estabelecer a índole dos seus personagens. O imagético cenário é quase um protagonista no ato inicial. É através dele que Del Toro forja as peças de uma cruel história de ambição.

Num primeiro momento, "O Beco do Pesadelo" chama a atenção pura e simplesmente pela atualização proposta. As cores trazem uma nova textura para a trama. A elegante direção de arte reforça o vigor visual de um longa que nos transporta para outra época numa experiência rica em detalhes. A fotografia em tons de verde e vermelho escuro sugere a deterioração ofuscada pelo brilho das excêntricas atrações. A câmera de Del Toro, sempre em movimento, envolve os personagens querendo dizer algo sobre eles. Não existe espaço para planos estáticos aqui. Mesmo nas sequências mais intimistas, o realizador usa a angulação das cenas para estabelecer o jogo de poder nas micro-relações estabelecidas ao longo da obra. Um tabuleiro em constante mudança…

Em "O Beco do Pesadelo", o monstro escondido no fundo da garrafa é apenas uma sequela. Neste mundo de altos e baixos, Del Toro introduz os seus expressivos personagens com um olhar atento para a real posição deles naquele microcosmo. A partir da perspectiva de Stan (Bradley Cooper), um homem misterioso de passado nebuloso, o realizador mergulha neste universo determinado a enxergar as virtudes e os pecados.

Algumas peças, como o ganancioso Clem (Willem Dafoe), a inocente Molly (Rooney Mara) e o turrão Bruno (Ron Perlman), se revelam facilmente. Outras como o trágico Pete (David Strathaim), a sedutora Zeena (Toni Collette) e o próprio Stan possuem nuances complexas que nem o melhor dos mentalistas poderia decifrar com facilidade. São nestes tipos que Del Toro se interessa. É na ambiguidade deles que o diretor busca acessar os tais monstros escondidos no fundo da alma.

Em sua primeira hora, "O Beco do Pesadelo" fala basicamente a mesma língua do original ao desnudar os seus personagens a partir da relação deles com a ambição. Se por um lado é frustrante ver como Del Toro não se apega a dinâmica pupilo/mentor envolvendo Stan e Pete, por outro é intrigante ver como o roteiro rompe com o viés concessivo do clássico ao enxergar as armadilhas escondidas nas elipses. Del Toro estabelece o círculo vicioso sem se prender a ele. O cineasta se afasta da verve moralista para enxergar a corrosão humana num meio desigual

Em "O Beco do Pesadelo", Guillermo del Toro assume as rédeas do remake à medida que ele escancara a falta de controle numa estrutura que se alimenta da fragilidade humana. A Segunda Guerra Mundial é o contexto. O terror, aqui, não está simplesmente na deterioração do indivíduo. O horror está na relação do homem com uma engrenagem desvairada. Na sua jornada rumo ao topo, Stan cruza o caminho de tipos poderosos, como o atormentado Ezra (Richard Jenkins), de mulheres ardilosas, como a terapeuta Lillith (Cate Blanchett, puro de veneno), de indivíduos vulneráveis, como a solitária Miss Harrington (Mary Steenburgen, que elenco é esse!). Todos frutos de um mesmo meio. Todos vítimas dos seus monstros interiores. Ele não está interessado na pureza dos virtuosos. O foco está na angústia dos desvirtuados.

"O Beco do Pesadelo" troca o mistério dos thrillers noir pelo horror do mundo real num filme sobre os fantasmas de carne e osso. Almas consumidas pelo ódio, pela ambição, pela vingança, pela tristeza. Almas personificadas na magistral performance de Bradley Cooper. A autoestima do homem cego pela sua sede de poder é investigada com riqueza de detalhes numa atuação de alguém disposto a abraçar todas as nuances do seu Stan. Enquanto a câmera de Del Toro se movimenta com uma suavidade calculada, Cooper age/reage guiado pelo instinto de um homem forjado para sobreviver. É a total conexão entre ator e personagem. É a verdade encapsulada não num copo de bebida, mas na fraqueza de um corpo de carne e osso.

Em "O Beco do Pesadelo", o horror que se manifesta em tela (Del Toro assume a brutalidade sem culpa) é uma consequência da monstruosidade do indivíduo humano num filme que não se compadece pela realidade que criamos para nós mesmos. "Eu nasci para isso!", é a sentença final perfeita para uma crônica sobre o fim anunciado a cada transição temporal. A cada passo em falso. Não é difícil "decifrar" a realidade. O desafio é escapar dela sem se perder pelo caminho.

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