quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Crítica | "Matrix Resurrections" escolhe a pílula azul numa continuação com um ilusório conceito de controle num mundo tecnológico


A coragem é uma virtude pela qual eu sempre vou prezar no cinema. Ainda mais no mainstream. É sempre prazeroso ver um filme (ao menos tentar) fugir da mesmice. É sempre prazeroso ver a desconstrução de signos e convenções. "Matrix Resurrections'' é um filme corajoso. Isso é inegável. De volta a franquia que a consagrou, Lana Wachowski (agora em voo solo) revisita o cultuado universo criado no final dos anos 1990 com uma grande motivação: recuperar a autoria sobre a sua obra. O caminho encontrado pela realizadora é a provocação. É a subversão do que representa a Matrix no mundo em que vivemos.

As intenções de Lana eram as mais corajosas possíveis. Na prática, porém, "Matrix Resurrections" esbarra na visão pueril com que a cineasta discute a questão do controle numa sociedade midiática aberta à diluição da individualidade. Em 1999, fazia sentido propor uma alegoria pessimista sobre a vida num futuro tecnológico. Em 2021, não. Lana sabe disso. Não à toa, "Matrix Resurrections" (re)embaralha as cartas a fim de estabelecer uma nova realidade (simulada ou não).

Thomas Anderson (Keanu Reeves) não é mais o hacker antissocial isolado do mundo. A Matrix não é mais um conceito inacessível. A ação não é mais uma necessidade. O roteiro assinado pela própria diretora intriga num primeiro momento ao contestar a realidade fílmica da trilogia. Uma abordagem promissora. E se tudo não passou do surto de um criador de jogos sem controle sobre a sua obra? É impossível não enxergar a metalinguagem aqui. Lana, tal qual Thomas, é obrigada a lidar com as sequelas da sua criação. Com a distorção, com a banalização e com a saturação dos conceitos impressos no código fonte da franquia. 

Nos anos seguintes ao seu lançamento, "Matrix" se tornou referências para grupos extremistas, para políticos de direita (com direito a treta no Twitter envolvendo Lana, Elon Musk e Ivana Trump), para uma tóxica orda de trolls/fãs e até para discursos de coach. É a total incompreensão do que representa a mensagem antissistema defendida pelo longa. Lana não aceitaria isso calada.

O melhor de "Matrix Resurrections'', na verdade, está fora da Matrix. Está na maneira com que, nas entrelinhas, a diretora usa a jornada de um acuado Neo para não só retomar (ou pelo menos tentar) o ilusório controle sobre a sua criação, como principalmente para discutir o frágil conceito de "cinema de autor". Na base da ironia, a cineasta testa as expectativas do público ao romper drasticamente com a verve anárquica do original para desafiar a nossa compreensão do que representa a Matrix. 

Neste ponto, a continuação pode ser tratada como uma espécie de vírus. Do tipo que usa um app "confiável" para se instalar no hardware e mudar toda a programação do seu notebook/smartphone. Lana não quer roubar dados. Ela quer desfragmentar. Ela resgata o clima de romance superficial estabelecido no desfecho do primeiro filme para conduzir a jornada de Neo para um outro caminho. O herói agora não luta contra o sistema. Ela não luta contra um oponente imparável. Ele luta contra as suas paranoias. Ele luta por amor. Ele luta pelo direito de viver um sonho. 

Uma sacada promissora que se perde na Matrix quando percebemos que a energia desta sequência vem exclusivamente da pílula azul. Em Ressurection, Lana confunde desapego com descompromisso numa sequência com conceitos inteligentes, mas uma execução relapsa em basicamente tudo o que se propõe. São duas horas e vinte de pequenas provocações que nunca se convertem num grande filme.

A questão, aqui, não é a maneira corajosa com que o roteiro rompe com códigos inerentes a jornada do "escolhido". O problema está na dificuldade do longa em desenvolver todo o resto. Elementos narrativos básicos como a construção da ameaça, do antagonista, do novo mundo "integrado" e até do romance são sacrificados por um texto que se contenta com o deboche autoconsciente. Com exceção do debate sobre a relação entre um autor e a sua obra, a verve pretensamente anárquica da trama leva a estória para uma zona rasa, escapista e sentimentalista. O próprio Neo de Keanu Reeves parece apático em meio a uma jornada tão sem cara de jornada.

Para piorar, Lana repete erros comuns dentro da franquia, como a manutenção da subserviência feminina representada na figura de Trinity. De volta ao papel original, Carrie-Anne Moss é um mero peão narrativo pensado para motivar a jornada do herói. Ela segue sem voz. Segue sem espaço. Segue sendo um arquétipo pré-programado numa Matrix envelhecida. Esse, aliás, é talvez o grande pecado de "Matrix Resurrections''. Estamos diante de uma continuação versão beta de um aplicativo que nunca seria lançado.

Os efeitos visuais soam arcaicos. A visão de futuro tecnológico parece sem vida. As cenas de ação (com exceção do clímax) são requentadas. Lana se recusa a modernizar o quarto filme. O que só acontece, infelizmente, com as substituições de Laurence Fishburne e Hugo Weaving pelos talentosos Yahya Abdul Mateen II e Jonathan Groff. Uma alteração que prejudica as intenções do roteiro, principalmente na revigorada interação entre Neo e o agente Smith.

Uma pílula azul em formato fílmico, 'Matrix Resurrections" flerta com a provocação, mas se casa com um argumento até careta em vários aspectos. Irritar fãs intransigentes hoje é fácil. O difícil é criar um filme à altura do original a partir de uma visão de futuro binário tão desconectada da realidade fluida em que vivemos.

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