segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Crítica | "Spencer" troca os fatos por sensações ao pintar um retrato subjetivo sobre uma princesa disposta a desafiar o horror da realeza


Em "Spencer", o diretor Pablo Larraín propõe uma cinebiografia diferente. Uma obra que troca os fatos por sensações. O cineasta não busca apenas humanizar a figura de Lady Diana. Ele usa a pompa da realeza para tentar entender a mulher aprisionada por códigos repressivos. Esqueça o ícone. Esqueça a personalidade empoderada. Esqueça a princesa do povo. "Spencer" desafia o trágico destino da querida monarca disposto a criar a partir da perseguição enfrentada por ela.

Aos olhos de Larraín, um feriado em "família" num castelo no interior ganha ares de pesadelo. O palácio se torna um quartel. O título de princesa era um fardo pesado para qualquer indivíduo carregar. Lady Di (Kristen Stewart) começa o filme perdida. Literalmente. Ela não reconhece mais aquilo que foi. O seu passado é engolido pela névoa da bucólica região. Voltar para casa é regressar para o vazio.

É interessante ver como "Spencer" desafia uma visão bidimensional da realeza. Quando olha para as paredes do pomposo castelo de campo, Lady Di encontra retratos que a assustam. São mulheres emolduradas resumidas a um rótulo. São regentes lembradas não pelo que viveram, mas por aquilo que representaram. "Eu seria conhecida por qual adjetivo", pergunta Diana para a sua camareira vivida por Sally Hawkins. "Chocante", responde a confidente escolhendo uma palavra que descola a protagonista daquele cenário.

Em "Spencer", Larraín enxerga Lady Di como um corpo estranho na realeza. Ele, consciente do que era a vida midiática dela (e do seu trágico destino), persegue a protagonista com uma câmera invasiva que não respeita os espaços. A sua intenção, contudo, não é replicar o hábito da imprensa britânica. Larraín não quer encurralar. Ele quer entender. O diretor usa os códigos daquele conservador cenário para extrair sentimentos que ajudam a tornar tudo mais humano. É um retrato subjetivo em três dimensões. A reveladora fotografia de Claire Mathon, sempre prezando pela profundidade de quadro, nos permite enxergar as múltiplas faces de Diana diante do medo que a consome.

"Spencer" rouba a privacidade para enxergar a luta de uma mulher indômita à procura da liberdade tomada por uma coroa. Enquanto os figurinos remetem a icônica Lady Di, Larraín pressiona para extrair a verdade da menina/mulher/mãe. Enquanto a preciosa direção de arte reforça a pompa em torno da rotina da princesa, a câmera do realizador realça a deterioração da protagonista com planos imagéticos que mais parecem retratos trágicos de uma mulher asfixiada. São contrastes sintomáticos.

"Spencer" constrói este estudo de personagem a partir da relação entre o íntimo e o midiático. A casca remete a Lady Di que conhecemos. O foco, porém, está na essência. Naquilo que nunca vimos. Na angústia de uma princesa diante do horror do patriarcado. Na verdade nunca capturada pelos retratos bidimensionais emoldurados num palácio. Lady Di não queria ser um quadro sem vida.

Um retrato complexo potencializado pela monumental performance de Kristen Stewart. A alma de um projeto desafiador. A atriz personifica a dor de uma figura errática. Ela desmistifica o ícone sem abrir mão da energia radiante que tornou Diana a "princesa do povo". Stewart absorve o turbilhão de emoções enfrentado pela personagem numa atuação pautada pela reação a estímulos angustiantes. Todas as sequências envolvendo a princesa e seus filhos, em especial, possuem uma carga intimista brilhantemente capturada por uma atriz em constante evolução. É através da maternidade, aliás, que Larraín desafia a repressão da realeza. Não à toa, nestes momentos, nas sequências em que mãe e filhos conseguem se isolar daquele mundo, o filme ganha uma atmosfera diferente. Mais acolhedora, leve e serena. 

A beleza de "Spencer" não está na expressiva construção visual. Não está nos figurinos, na direção de arte, muito menos na vida dentro dos castelos da família real. O belo, aqui, está na coragem com que Larraín captura a subjetividade de uma regente com sede de liberdade. Ele se encanta pela nobreza de uma mulher do mundo. Ele desafia os fatos à procura de um novo começo. Ele ouve a voz da princesa que o povo não conheceu. Destino? Que destino? Voa Lady Di!


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