sábado, 29 de janeiro de 2022

Crítica | Provocante e indigesto, "Titane" usa o choque visual para nos fazer a sentir a dor de uma mulher consumida



Tentar racionalizar a imagem do cinema pode ser um exercício bem limitante. Nem tudo precisa fazer sentido. Nem tudo precisa ter um único sentido. Às vezes só precisamos sentir. Essa é a graça em uma forma de arte tão subjetiva. É isso que faz de "Titane'' uma produção tão oportuna. Uma obra que choca para gerar novos estímulos. Um thriller de horror com uma forte carga dramática que, num movimento ousado, usa o elemento sensorial para tentar acessar a intimidade do público.

É impossível permanecer impassível a títulos como "Titane''. E toda reação a ele é válida. Da repulsa à exaltação. Da raiva ao amor. Da confusão à compreensão. O "imaginativo" longa dirigido por Julia Ducournau assume a estética do absurdo para discutir a perda de controle sobre a máquina humana numa produção que se alimenta da sua dor e também é consumida por ela. Um filme que se recusa a elucidar.

"Titane'' respeita a aura lacônica da sua protagonista, a sexy Alexia (Agathe Rousselle). É assim que Ducournau enxerga a sua protagonista inicialmente. Um pedaço de carne vazio. Um flashback da infância revela a rara condição dela. Em função de um traumático acidente, Alexia possuía uma placa de metal na cabeça. Seria esse o motivo do comportamento da protagonista? Seria essa a justificativa para o seu "amor" por carros?

Não espere respostas em "Titane''. Ducournau provoca ao, a partir de um ato de impulsividade de Alexia, despir a silenciosa personagem da maneira mais imagética possível. A diretora pisa no acelerador numa estrada escura sem medo de derrapar nas curvas de uma obra que ousa em sua forma. É o "choque pelo choque" sem pudor. A cineasta abraça o bizarro determinada tirar o público de uma passiva zona de conforto.

O horror, num primeiro momento, surge para intrigar. Por que Alexia tomou essa decisão? Por que um ato tão extremo? Por que uma paixão tão fulminante? As respostas estão escondidas nas sensações geradas pelas imagens. Ducournau impressiona ao enxergar a ambiguidade no 'body horror'. "Titane" não choca apenas pela sua bizarrice. O impacto, aqui, está naquilo que o cinema extremo de Ducournau pode representar: a violência impressa no "chassi" feminino.

Por trás da brutalidade existe uma trama sobre a perda de controle de uma mulher na sua relação com o sexo, com o corpo, com o futuro, com o presente... Ducournau desafia a nossa compreensão ao atribuir múltiplos sentidos a cada evento experimentado por Alexia. Seria "Titane" uma reflexão sobre o materialismo? Seria uma obra sobre o estrago causado pela ausência paterna? Seria um drama sobre maternidade compulsória? Seria um filme de horror sobre uma mulher reprimida à procura da sua identidade? Seria uma obra sobre a masculinidade como instrumento de defesa feminino? São tantas possibilidades...

O fato é que "Titane" se alimenta da dor para impactar. A angústia de Alexia é reconhecível. As feridas de Alexia são identificáveis. A sensualidade de Alexia expõe a mulher presa numa casca limitante. Ducournau nos obriga a experimentar a dor dela. Ela assume o absurdo para impor um exercício de empatia. É impossível desviar o olhar quando a ferina Agathe Rosselle dança (a cena no corpo de bombeiros é SENSACIONAL). É impossível não sentir algo quando os fluídos corporais de Alexia se confundem com óleo. O sangue feminino é o combustível de uma obra agressiva. É cinema do tipo indigesto. Daquele que divide simplesmente por existir.

O que falta a "Titane'', contudo, é aliar a forma à construção narrativa. No momento em que tenta tornar a sua obra mais palatável, Ducournau investe em soluções que enfraquecem a construção dramática. O arco de Alexia perde força quando a cineasta tira o pé do acelerador para enxergar a luz no fim da estrada. Embora filme a intimidade de Alexia com muito ímpeto visual (os planos fechados/detalhe parecem sempre realçar a fragilidade da protagonista), a realizadora vê a alegoria/sátira/fantasia (entenda como quiser) proposta ser consumida pela busca de uma verdade feminina única e exclusivamente pautada pela dor.

Uma abordagem compreensível, mas que tira de "Titane" a chance de transcender através do absurdo (como bem fez o excelente hit nacional "As Boas Maneiras''). Um filme que, tal qual a sua protagonista, começa e termina prisioneiro da realidade. Do tipo que corrompe até a mais titânica das latarias.

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