quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Crítica | Com um olhar subjetivo para a angústia feminina, "A Filha Perdida" invade a intimidade de uma mulher atormentada pelo fantasma da maternidade


A maternidade tóxica é um tema tabu na realidade do cinema mainstream. O que, por si só, reflete uma lógica patriarcal acostumada a idealizar a figura da mãe. As exceções da regra, quase sempre, surgem em obras carregadas de julgamento. Títulos que preferem culpar a estudar os efeitos da culpa. Em "A Filha Perdida'', Maggie Gyllenhaal não quer julgar ninguém. No seu longa de estreia na direção, a eclética atriz enxerga o terror na impotência feminina num filme em que a maternidade surge como uma maldição e as crianças como fantasmas de um tempo consumido por um rótulo repressivo.

A partir de um recorte intuitivo (os flashbacks se fundem a trama gradativamente imprimindo a dor de uma mulher confrontada por suas decisões), a cineasta usa as féias de uma professora, a errática Leda (Olivia Colman), como o ponto de partida para um retrato subjetivo sobre um lado pouco convidativo da maternidade. Naquele cenário paradisíaco, quando a protagonista deixa de ser definida por aquilo que ela decidiu prezar (a sua profissão), Gyllenhaal mergulha na psique de uma mulher ferida por uma culpa que brota do silêncio. Ou melhor, do vazio interrompido por uma ruidosa família de turistas americanos.

O gatilho são as memórias. Ver uma jovem mãe, a esgotada Nina (Dakota Johnson, dedicada ao valorizar o desespero escondido numa bela "casca" jovial), cuidando da sua filha resgata velhos fantasmas reprimidos pela vida que Leda escolheu levar. É fascinante ver como o roteiro assinado pela diretora, baseado no elogiado best-seller de Elena Ferrante, une as personagens numa teia invisível que logo se torna palpável. É um círculo vicioso que cruza gerações. O simples reconhecimento gera uma relação que ganha nuances complexas à medida que o passado se torna mais vivo para Leda.

Absorvida por uma realidade que já foi a sua, a protagonista sucumbe às lembranças de um tempo tomado por um amor que intoxica. Os flashbacks protagonizados por Jessie Buckley invadem a tela como pensamentos intrusivos para revelar o que machucava Leda. A imposição gerada pelo meio. O esgotamento gerado pelos filhos. A frustração sexual. A desvalorização profissional.

Gyllenhaal pinta um retrato complexo que não se incomoda em soar indigesto. Uma visão crua sobre a maternidade que envolve a trama como um abraço que desconforta. A angústia feminina leva a atos impulsivos. Uma boneca. Um objeto tão banal se torna um instrumento para a construção de uma imagética metáfora sobre a maternidade compulsória. Sobre um círculo vicioso trabalhado desde a primeira infância. É a boneca tal filha perdida. É ela o símbolo de uma formação que idealiza a maternidade desde cedo sem sequer estudar as sequelas deste processo.

Gyllenhaal invade o vazio de Leda determinada a ouvir aquilo que não era dito, a capturar os sentimentos escondidos por um sorriso, a estudar a dor gerada por uma imposição. "A Filha Perdida" exige identificação por parte do público. A diretora nos desafia a sentir. Ela nos obriga a encarar uma realidade ofuscada por um senso comum que aprisiona o feminino. O desconforto está impresso não só na natureza temática do plot, como na forma indiscreta com que Gyllenhaal rompe a intimidade de Leda. Sua câmera na mão não respeita a privacidade. Seus enquadramentos sufocam.

Nos momentos em que se distancia da perspectiva de Leda, contudo, Maggie Gyllenhaal se perde no labirinto de emoções proposto. A relação da protagonista com a detestável fauna de turistas surge como um dispersivo agente facilitador. A realizadora usa esta presença "ameaçadora'' para verbalizar confissões até então brilhantemente expostas nas entrelinhas. A ausência masculina, embora sugestiva, revela a falta de foco de um roteiro em crise de confiança. A tensão envolvendo um subplot descartável surpassagema concessão.

Uma abordagem narrativamente nauseante que encontra o equilíbrio em Olivia Colman. Uma atriz que diz tudo sem precisar falar nada. Ela carrega na sua presença a culpa imposta e a autoimposta. Ela desafia a direção invasiva de Gyllenhaal ao lutar contra os fantasmas de um passado que ainda machucava. Colman entende Leda. Gyllenhaal não julga Leda. Você está aberto a sentir por Leda? Em "A Filha Perdida'' a maternidade surge como um amor que envenena. É a idealização que consome. É uma felicidade passageira.

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