quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Em "A Mão de Deus", Paolo Sorrentino faz as pazes com o passado num filme sobre o vazio preenchido com a arte


A realidade no cinema é uma entidade com múltiplas faces. A Sétima Arte permite que o real ganhe contornos estilizados. A Sétima Arte permite também que o real ganhe a tela em sua forma mais brutal. A realidade pode se manifestar através do surrealismo, do onirismo, do absurdo... Em "A Mão de Deus'', a realidade assume uma face idealizada. O que nós vemos são fatos. São uma dolorosa parte da vida do cineasta Paolo Sorrentino. O jovem, contudo, se tornou experiente. O garoto de 17 anos torcedor do Napoli e apaixonado por Maradona se tornou um cineasta. No seu mais novo (e pessoal projeto), Sorrentino usa a sua arte para recuperar, ao menos na realidade do cinema, o "controle" sobre o capítulo mais duro da sua história.


Através da linguagem cinematográfica, ele resolve regressar ao passado. A tristeza deu lugar ao saudosismo. A dor das experiências vividas o desafiou a recriar. "A Mão de Deus'' é um filme sobre o vazio ocupado pelas memórias, pela nostalgia e as lacunas nunca mais preenchidas. O diretor flerta com as convenções dos 'coming of age movies' disposta a usar o seu alter-ego, o curioso jovem Fabietto (Filippo Scotti), como uma ponte para o estudo da formação não só de um homem, mas de um artista. Sorrentino revisita o seu passado disposto a exaltar a imperfeição, a disfuncionalidade de uma família reconhecível, as curvas (de todos os tipos) das esculturais mulheres que cruzaram a sua adolescência. Ou seja, as peculiaridades de uma juventude feliz.

Quando olha para trás, Sorrentino enxerga o frescor da sua amada Nápoles. Quando olha para trás, Sorrentino acessa as suas emoções mais pessoais com a intenção de revelar aqueles que ajudaram a construir a sua visão de mundo. O diretor não emula Federico Fellini por pretensão artística. Tampouco por uma simples homenagem. Ali estava alguém cansado da realidade dos fatos. Em "The Hand of God" (no original), Sorrentino se desarma à medida que extravasa a sua intimidade em cena. A nostalgia preenche o vazio deixado por um verão em família.

É revigorante ver como o cineasta adota o exagero determinado não a satirizar, mas a rir/admirar (d)aquilo que talvez o jovem Paolo não tenha conseguido. O roteiro não titubeia em caçoar de algumas das personagens mais marcantes da sua vida. A intenção, porém, não é a ofensa. O olhar de Sorrentino está na sua família enquanto um apaixonante instrumento de inspiração. "Você já é a minha musa", diz o jovem protagonista para a sua exuberante tia, uma presença feminina voluptuosa típica do cinema italiano de Sophia Loren. Será que o jovem Paolo chegou a manifestar tão diretamente essa "admiração"? Será que ele teve essa coragem? Nunca saberemos...

Sempre que desnuda (às vezes literalmente) essa magnífica personagem, o diretor foca no efeito dela sob o protagonista. Um fascínio que vai além da atração sexual. O mesmo vale para o tio passional sempre muito pessimista, a matriarca senil que não titubeava em desferir ofensas, a vizinha baronesa que experimentava a sua própria versão da nobreza decadente. O que nós vemos em tela é a realidade do jovem Paolo, ou a realidade do cinema de Paolo Sorrentino? Eu diria que se trata de uma mistura. Um círculo virtuoso.

Em "A Mão de Deus'', essas figuras se revelam um combustível para o artista. Embora o foco esteja na jornada de amadurecimento de Fabietto (encarado com uma pureza verdadeira por Filippo Scotti), Sorrentino revisita o passado com a intenção de expor as suas raízes enquanto cineasta. Seus pais, sob essa perspectiva, talvez sejam o símbolo maior da sua verve criativa. Maria (Teresa Saponangelo, radiante), a mãe, não perde a oportunidade de pregar peças nos amigos. Um senso de humor extravagante típico na filmografia de Sorrentino. Do pai, por sua vez, o expansivo Saverio (Toni Servillo, monumental), vem a energia luminosa/ambígua que acompanha os seus principais projetos. Por trás do amor entre os dois existiam segredos estudados com um olhar agora compreensivo de quem sabe que a idealização só é possível na realidade do cinema.

Sorrentino se abre aos olhos do público através da história dos seus. Com a sua usual sutileza, o diretor condensa as emoções em passagens muito pessoais. Ele se seduz pelas falhas, mas zela pelos sentimentos mais privados. O que fica claro, em especial, na fantástica cena do colégio. Ali, quando a brincadeira perde sentido, Fabietto chora. A câmera de Sorrentino respeita o espaço dele.

Quatro décadas depois, a volta ao passado é ainda dolorosa. Um sentimento que fica evidente nas passagens mais sóbrias. Sempre que rompe com a estética exuberante, "A Mão de Deus'' perde vigor. Uma ruptura ora calculada, ora involuntária que diz muito. Nestes momentos notamos a presença dos fantasmas habitantes do tal vazio nunca preenchido. O elemento sensorial que permeia toda a trama, aqui, ganha um caráter ainda mais imersivo. A beleza de "A Mão de Deus" não está somente no belo. Na Nápoles ensolarada retratada com extremo vigor pela fotografia de Daria D'Antonio. Nas curvas da estonteante atriz Luisa Ranieri. No calor humano que surge como um elo invisível brilhantemente trabalhado pelo roteiro\montagem.

O belo também está no imperfeito (não à toa Maradona surge como um símbolo), na ausência, no som seco de um caixão sendo lacrado, no silêncio de uma Itália melancólica. Essa é a poesia da vida. Ao entender que estes momentos são parte da sua formação enquanto homem/cineasta, Sorrentino parece se reconciliar com a sua infância. Em "A Mão de Deus'', nostalgia e onirismo se confundem num drama com cores quentes, personagens calorosos e uma visão acolhedora sobre a dura missão que é amadurecer.

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