sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Crítica | "Benedetta" usa a "profanidade" do cinema para encenar uma sexualizada via crucis feminina disposto a expor o verdadeiro sacrilégio na Igreja dos homens


"Como eu posso saber o que é verdadeiro ou falso", pergunta a relutante freira Benedetta diante de visões que ela julgava ser uma manifestação divina. "Só através do sofrimento você verá Cristo", responde o padre confessor sugerindo o sacrifício como a única forma de alcançar o sagrado. Assim, através da exploração da carne, a Igreja Católica se colocou no poder na Idade Média. Uma era de trevas. De violência, opressão e morte. Assim, "milagres" foram criados e milagres foram silenciados.

Em "Benedetta', Paul Verhoeven não parece interessado neste segundo grupo. No verdadeiro mistério da fé. As suas intenções são mais provocantes. Ele usa a exploração da carne seguindo a lógica "sagrada" da Igreja e a "profana"' do Cinema numa obra que encena a sua sexualizada visão de via crucis feminina para desnudar os eventuais sacrilégios escondidos nos "milagres" fabricados por uma instituição corrupta. É o evangelho evangelho farsesco segundo o Paul Verhoeven.

Com a sua visão de cinema pautada pelo choque, o realizador entalha a realidade de muitas na imagem fílmica disposto a macular símbolos sagrados para expor a insanidade na religião dos homens. O realizador não parece crer nos milagres da autoproclamada Santa Benedetta. Sempre que invade a subjetividade desta jovem freira, Verhoeven o faz através da sátira. Ele usa o absurdo para expor a visão de mundo de alguém que cresceu prometida à Igreja. De uma "esposa de Jesus". A ironia sugere a descrença. A envolvente construção narrativa aponta as certezas.

Verhoeven crê na mulher Benedetta. Ele se encanta pela força de alguém capaz de manipular (será?) as regras do jogo para se emancipar. Com um texto deliciosamente ambíguo, o diretor não se cega para outras possibilidades. A provocação, num primeiro momento, nasce da visão farsesca de Idade Média proposta. Tudo parece limpo demais. Tudo parece idealizado demais. Tudo parece miraculoso demais. Uma encenação propositalmente exagerada que dialoga com a natureza extrema da protagonista.

Benedetta é uma personagem fascinante. Ela é o feminino fundido ao masculino. O produto de um meio repressor. Ela é, também, uma figura maquiavélica elevada pelo texto irônico de Verhoeven. Quando uma jovem vítima de abusos (Daphne Patakia) entra para o convento através de um gesto de bondade seu, Benedetta vê o amor por Jesus se transformar em paixão. Do tipo que traz novas "cores" às suas visões.

É revigorante notar como o longa usa a relação de Benedetta com a fé para expor a intimidade de uma jovem culpada por seus sentimentos. A excitação gerada por um novo laço de intimidade física leva a projeções que se confundem com a realidade. Verhoeven está menos interessado na veracidade das manifestações de santidade da protagonista e mais focado na natureza das emoções dela. O que é verdadeiro? O que é falso? O diretor nos deixa em dúvidas ao sugerir tanto a fragilidade de uma mente cega pela fé, quanto a inteligência de uma jovem determinada a usar as suas convicções para ascender numa estrutura social patriarcal.

Se a Igreja Católica explorava a carne através do sofrimento, do martírio e do autoflagelo, Verhoeven "explora" o corpo feminino através do fetiche, do sexo e do prazer. Um "pecado" consentido pela realidade do cinema. "Benedetta" desnuda para acessar a intimidade. O diretor profana o sagrado com o intuito de escancarar o vazio de signos que deixam de fazer sentido diante da corrupção da fé. Não é o amor entre duas mulheres que representa o sacrilégio aqui. O questionável ideal de pureza casta é consumido pela alienação, pelo fanatismo, pela submissão.

É a "peste" dos homens que viola o sacro. É o venal duelo de forças num meio regido por códigos ilusoriamente santos que consome o milagre. Dentro do contexto proposto, Benedetta encontra na figura da madre superiora vivida por uma intensa Charlotte Rampling uma rival nutrida pelo mesmo sentimento. Ambas queriam estar mais próximas do masculino. Benedetta de um Jesus Cristo heroico e feminino. Felicita da abusiva alta cúpula da Igreja Católica.

Verhoeven encena a sua versão de via crucis para atacar a farsa de uma Igreja Católica santa. Uma entidade mundana sustentada pelo sofrimento alheio. O cenário sociopolítico, a explosão da peste negra na Europa, só ajuda a expor uma instituição desumana, desigual e desvirtuada. À essa altura, Benedetta não é mais sobre o sagrado. Ao duvidar do milagre, Verhoeven não ataca a fé de uma mulher. Ele questiona o poder daqueles que julgavam em nome de Deus. Homens pequenos desafiados por uma freira que acreditava no sagrado e que praticava o amor seguindo as suas próprias (e distorcidas) regras.

Uma crítica potente que só não ganha ecos mais profundos devido ao viés fetichista adotado por Verhoeven. O problema, na verdade, não está diretamente ligado ao foco no prazer feminino. Isso não é um pecado mortal. O que frustra é ver como, na busca pelo choque através do sexo, o realizador se afasta da subjetividade de Benedetta. Suas peculiares visões são repentinamente abandonadas. Todo o processo de "masculinização" da protagonista é pautado na relação dela com o poder. O romance com a radiante Bartolomea parece servir apenas ao estudo sobre o prazer culposo num retrógrado meio religioso.

Um retrato "egoísta'' atenuado pela magistral performance de Virginie Efira. É assustador notar como ela vai da doçura à ferocidade com um senso de teatralização convincente que casa com a farsa proposta por Verhoeven. A atriz exagera sem sacrificar as nuances mais íntimas do texto. O seu trabalho de voz, em especial, é brilhante. Uma performance que urge consciente da vulnerabilidade da personagem-título. Um predicado valorizado pela sagacidade com que Verhoeven, de forma totalmente intuitiva, exalta a inteligência da protagonista. O realizador envolve ao estabelecer o instinto de sobrevivência da freira. Em tempos de pandemia no século XV, Benedetta já era favorável ao isolamento social…

Só mesmo um diretor como Paul Verhoeven, em dias de tamanha sensibilidade, tiraria um filme desafiador como "Benedetta" do papel. Um verdadeiro milagre cinematográfico.

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