quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Crítica | Uma obra imune à rótulos, "Annette" cria a partir de obviedades numa experiência audiovisual que provoca na base da originalidade


Uma raridade em tempos de pouca criatividade no cinema mundial, "Annette" é a prova que não existe lugar-comum para um realizador autoral. É fascinante ver as escolhas que o diretor Leos Carax faz para tornar o musical estrelado por Adam Driver e Marion Cotillard uma das experiências cinematográficas mais originais dos últimos anos. O cineasta francês não ousa na forma, tampouco no conteúdo. O que impressiona, aqui, é ver a capacidade de Carax ao criar a partir de obviedades. De metáforas autoexplicativas interpretadas com um senso poético capaz de potencializar uma crônica tragicômica sobre a toxicidade no showbiz.

Não existe um segundo de loucura em "Annette". Por trás das excêntricas escolhas narrativas estabelecidas ao longo das vigorosas 2 h e 20 min de projeção está um realizador determinado a extrair algo novo dos clichês. Considerado por muitos um diretor "fora da caixinha'', Carax resolve desafiar este limitante rótulo numa obra que provoca ao entregar aquilo que esperávamos ver de maneira absolutamente singular. Um filme palatável, mas indômito. Antecipável, mas surpreendente.

No papel, "Annette" parte de um lugar-comum. Estamos diante de mais um filme sobre um casal de estrelas, o ácido comediante Henry (Driver) e a doce cantora de ópera Ann (Cotillard), consumido pelos altos e baixos gerados pelas imposições da indústria do entretenimento. Ele ofendia com o seu humor cínico e pretensioso. Ela acalentava com o seu canto belo e gracioso. Os opostos definitivamente se atraem. Eis o primeiro clichê de "Annette". Carax, contudo, não parece dedicado ao amor dos protagonistas. O olhar do cineasta recai justamente para as diferenças entre eles. Para o silêncio que precede a tempestade.

A paixão que move os dois tem um quê melancólico. O diretor se seduz pelo potencial problema escondido na aparente funcionalidade. A intimidade é abreviada pela superexposição. A encenação torna tudo mais ambíguo. O que é piada? O que é marketing? O que é real? Carax, em mais uma opção para tornar a sua obra "acessível", assume a linguagem sensacionalista dos tabloides para construir esta relação a partir da reação midiática. O que logo se revela uma provocação. Ele usa um meio pouco confiável (mas popular) para expor os personagens. 

A verdade, no entanto, surge mesmo no canto. O cineasta usa a beleza da música para expor a natureza dos personagens. Ele usa o audiovisual para expor a realidade de um meio tóxico. Uma visão poética e ao mesmo tempo realística que dita o curso da trama. "Annette" é sobre o feminino, mas não é sobre a maternidade. É estimulante notar como o realizador testa as nossas expectativas ao construir um filme musical em que a voz da única cantora é um mero alicerce narrativo. O que pode ser bem frustrante para muitos. Marion Cotillard, definitivamente, merecia mais tempo de tela. A sua Ann merecia ter os seus conflitos íntimos estudados.

Embora incomode num primeiro momento, esta opção começa a fazer sentido quando percebemos o real objeto de estudo do cineasta. A voz dela é a pureza. A voz dele é a fraqueza. Deste choque de forças, surge Annette. A filha de um relacionamento frágil. A filha de um homem desequilibrado. A filha de um meio consumido. Tudo o que diz respeito à pequena personagem-título é simplesmente genial. Nunca um parto foi tão musical. Nunca uma solução visual autoexplicativa foi tão original. A beleza da metáfora, no fim, está na sua compreensão.

Em "Annette", o óbvio se torna poético graças à simplicidade criativa com que Carax interpreta os signos propostos. A natureza lúdica pensada pelo cineasta contrasta com o tom sujo e ambíguo da premissa. Um filme sobre alcoolismo, sobre violência doméstica, sobre exploração do showbiz, sobre o efeito da decadência na identidade de uma celebridade. Enquanto Ann representa a arte em sua face mais transcendental, Henry representa o status conseguido através da fama. Algo facilmente corruptível. A partir dos revigorantes acordes da banda Sparks, Carax canta a distorção. Canta a corrupção da pureza. Canta o abandono infantil. Canta a derrocada masculina.

A pequena Annette é um "fantoche" num meio midiático. A obviedade, mais uma vez, é redimensionada devida a maneira ácida com que o diretor explora uma solução visual provocante. O flerte com a fantasia, aqui, permite que o longa foque menos no sofrimento da criança e mais na negligência do pai. É o absurdo à serviço de um texto mordaz. Carax associa Henry ao pior do seu mundo. O diretor, entretanto, rompe mais uma vez com os clichês ao nunca reduzir a vilania ao masculino. A mira dele se volta para o contexto que deforma indivíduos.

Não à toa, o maestro vivido por um expressivo Simon Helberg surge como um interessante (mas subaproveitado) contraponto à figura do pai. O virtuoso acolhe. O desvirtuado se afasta. Henry é a ambição. Henry é a angústia de alguém prestes a ser descartado. Quando o personagem vivido por um impressionante Adam Driver canta, nós logo percebemos a sua fragilidade. O ator esconde na imponência física de um tipo polêmico o peso do tormento de um artista que se perdeu pelo caminho.

"Annette" não quer julgar. "Annette" também não quer perdoar. "Annette" quer expor. Para isso, Carax funde a pureza da arte musical com a acidez da comédia urbana. O que se reflete, claro, na construção visual do longa. O diretor rompe com a linguagem clássica dos musicais ao modernizar primeiro o cenário. A fotografia em tons verde e azul de Caroline Champetier surge como um vislumbre de uma relação carregada de toxicidade. O minimalismo de grande parte dos enérgicos e inventivos números musicais converge com o constante flerte com a linguagem teatral. Sem querer revelar muito, a sequência em que o maestro comanda uma orquestra enquanto se abre perante o público é daqueles momentos arrepiantes conduzidos por um realizador com total controle do show.

Com um olhar singular para uma trama "cantada" em diversos outros acordes, "Annette" é cinema, é música, é vanguarda, é experimentalismo. Uma obra imune a rótulos. Um longa que assume a imperfeição vocal (e humana) para impactar. Um musical indiscutivelmente ousado e estranhamente acessível.

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