terça-feira, 30 de novembro de 2021

Crítica | "Noite Passada em Soho'' enxerga a inspiração na raiva feminina num thriller de horror pensado para provocar e projetado para maravilhar


"Noite Passada em Soho'' é, em sua essência, uma celebração do poder da imagem cinematográfica. Não existe um frame que não tenha sido minuciosamente pensado no inquietante novo longa do diretor Edgar Wright. De longe o mais ousado da sua carreira. Um senso de audácia que vai bem além do conceito visual proposto. É fácil ficar maravilhado com a viagem rumo aos anos 1960 proposta pelo cineasta. A partir de uma construção de mundo imersiva, o diretor mergulha numa região de Londres "conservada" pelo tempo disposto a ilustrar os sonhos de uma jovem estilista. Eloise (Thomasin Mckenzie) queria desenhar suas roupas. O talento estava no sangue. A instabilidade também. Disposta a fazer jus à memória de sua mãe, a jovem do interior desafia o seu passado (e o de muitas outras filhas) ao migrar para a capital determinada a se formar numa escola de moda. O que poderia dar errado?

No mundo dos sonhos de Eloise, Londres era uma cidade cosmopolita, cheia de charme e com inúmeras oportunidades para os virtuosos. A realidade, contudo, expõe uma outra face desta cidade. Em "Noite Passada em Soho", passado e presente se espelham numa obra com um senso de anacronismo singular. Edgar Wright, primeiro, fisga o espectador com o poder de suas convidativas imagens ao assumir o entusiasmo de Eloise como se fosse o seu. Nos "sonhos" em Soho, a protagonista se depara com aquilo que a inspirava. Não uma pessoa. Tampouco um lugar. E sim uma década. Mais do que um simples cenário, a Soho dos anos 1960 é uma personagem. É o elo que une o "vintage" e o "moderno".

Num evento misterioso, Eloise cruza o caminho de Sandie (Anya-Taylor Joy) uma espécie de musa/alter-ego inserida num outro contexto. Os sonhos da estilista de 2021 eram os mesmos da cantora de 1966. Ambas queriam prosperar. Ambas almejam o sucesso. Ambas são consumidas por traumas inerentes ao meio machista em que habitavam. Antes de abraçar o horror, Wright, com total domínio sobre o tom da obra, estabelece o drama que desencadeia o caos individual. "Noite Passada em Soho" não é uma obra saudosista. O filtro sessentista serve a um propósito maior. Serve a um enervante estudo sobre a desilusão feminina num cenário que conserva também os seus problemas estruturais.

É fascinante ver como Wright usa o cenário para estabelecer o círculo vicioso que move a trama. "Last Night in Soho'' (no original) é sobre sonhos compartilhados pelo feminino. É sobre sonhos consumidos pelo masculino. É sobre identificação. O realizador pega a estrada mais desafiadora ao romper com o maravilhamento inicial disposto a extrair a tensão do medo. O roteiro assinado pelo próprio diretor, ao lado de Kristy Wilson-Cairns, é astuto ao nunca explicar o porquê de tamanho receio na relação de Eloise com o masculino. As imagens falam por si só. As "assombrações" são reveladoras. A verdade está na realidade.

Eloise e Sandie, aos olhos do diretor, são filhas de um mesmo mundo. Wright testa as expectativas do público ao enxergar além da sororidade. Existe mais do que união aqui. Existe admiração. Existe desilusão. Existe compreensão. Existe desespero. Os gritos do passado ecoam no presente. Pior! São estranhamente reconhecíveis. Os "fantasmas" só ganharam uma nova forma. O cineasta abraça o caótico ponto de vista de Eloise determinado a construir o mistério a partir da sua busca por respostas (todas sintomáticas).

O paranormal não precisa ser explicado. Seria uma tolice. É no real que o diretor põe a sua energia. Na dor feminina ofuscada pelo brilho de uma era. As luzes escondem a decadência humana. A fotografia em tons ora cintilantes, ora soturnos de Chung-Hong Chung envolve as jovens protagonistas realçando a deterioração do sonho. Em "Noite Passada em Soho", o estilo esconde a sujeira. O glamour maquia a angústia de muitas. Wright toma decisões ousadas ao extrair o horror da intimidade das suas personagens, das reações delas ao meio e do estrago causado por sacrifícios na busca por um ilusório conceito de empoderamento. Um filme sobre sonhos corrompidos, mas mulheres inabaláveis. E que mulheres...

Thomasin McKenzie e Anya-Taylor Joy traduzem o misto de independência, impotência e raiva das suas personagens com um senso de magnetismo estonteante. Toda a beleza estética do longa se torna um mero complemento quando Joy surge cantando o hit "Downtown" à capela, ou quando McKenzie traz o expressionismo para o século XXI com o seu penetrante olhar de desespero. Wright sabe como desenvolver o potencial imagético das suas personagens sem prejudicar a construção narrativa. Ele mergulha na intimidade delas não através de diálogos expositivos, mas de imagens reveladoras. O vigor neonizado comunga com a expressiva direção de arte vintage determinado a envernizar uma realidade sombria. Um espetáculo audiovisual surpreendente em todos os aspectos, "Noite Passada em Soho'' enxerga a inspiração na raiva feminina num thriller de horror pensado para provocar e projetado para maravilhar.

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