domingo, 5 de dezembro de 2021

Crítica | Com um olhar revelador para a brutalidade do cowboy, "Ataque dos Cães" traz o western para o século XXI num drama enfático repleto de sutilezas


Não é exagero afirmar que o Western se construiu a partir da exaltação da imperfeição masculina. O cowboy idealizado por ícones como John Ford e John Wayne trazia consigo características que um homem precisava ter para "sobreviver" num cenário regido pela lei do mais forte. Uma lógica máscula típica de uma deformada estrutura desigual. O meio, por si só, explicava os desvios destes "heróis". Ao longo dos anos, contudo, o gênero relutou em olhar para o contexto. O faroeste consagrou mitos, mas custou a os humanizar. O foco, durante muito tempo, ficou no efeito gerado pelo indivíduo. No masculino como parte (causadora) do problema. Um olhar muito direcionado para os desvios de ordem social (machismo, racismo, sexismo). E a angústia do homem?

Nos últimos anos, porém, temos assistido a uma mudança nesta visão sobre o gênero. O feminino requisitou o seu lugar de fala no faroeste com disposição para reescrever o passado. Para desafiar velhos arquétipos. Para contestar o comportamento até então exaltado pelo gênero. Uma nova perspectiva que alcança o seu ápice em "Ataque dos Cães''. Com um olhar íntimo para o meio enquanto agente deformador, o potente longa de Jane Campion mergulha no Western determinado a usar o árido cenário para ressignificar as imperfeições masculinas dos esgotados caubóis.

Phil, vivido por um assombroso Benedict Cumberbatch, surge à princípio trazendo as características do herói que o segmento ajudou a construir. O típico vaqueiro respeitado pelos seus, que contava histórias de um passado glorioso e não titubeava em manifestar a sua força sempre que preciso. Dividido em cinco mini atos que se correlacionam a partir das dúvidas que surgem pelo caminho, o roteiro assinado pela própria diretora, baseado no livro de Thomas Savage, começa seguindo uma lógica bem tradicional. Temos dois Irmãos, o indômito Phil (Cumberbatch) e o racional George (Jesse Plemons, soberbo), uma "missão", uma relação de temor e confiança entre o masculino. Campion, no entanto, se recusa a estudar os personagens a partir dos feitos do cowboy idealizado. É no cenário que ela busca respostas. O velho Oeste é o vilão unidimensional da vez aqui.

A cineasta usa o contexto para acessar a intimidade destes homens e expor a verdade por trás da casca criada. Em "Ataque dos Cães'', o protagonismo é sabiamente diluído à serviço de uma visão provocante sobre o todo. Antes de tentar entender o amargor de Phil, a introspecção cosmopolita de George e a deterioração de Rose (Kirsten Dunst, marcante), Campion se preocupa em estabelecer as regras de um meio tóxico para investigar o efeito delas sobre os protagonistas. É fascinante ver como a diretora, num retrato enfático carregado de sutilezas, captura os detalhes que o gênero nunca deu a devida atenção.

"O que você vê quando olha para aquela montanha?", diz Phil sugerindo algo que deveria ser fácil de enxergar, mas que poucos conseguiam ver. Essa pergunta é um convite à reflexão. Por trás dos contrastes criados pela bucólica fotografia em tons dourados de Ari Wegner existe um drama sobre espaços não preenchidos. Sobre insinuações reveladoras. Sobre imagens sugestivas reinterpretadas a partir deste novo olhar. O vazio cênico é tão evidente quanto a distorção afetiva dos personagens. A realizadora molda o micro a partir do macro. Quanto mais conhecemos o contexto, mais sentimos pelos protagonistas. A brutalidade de Phil esconde algo. A polidez de George sugere algo. A impotência nauseante de Rose ilustra algo.

É na intuitiva busca pelos porquês que "Ataque dos Cães" desafia o status quo do segmento. Os protagonistas gritam silenciosamente. Se impõem discretamente. Chamar a atenção parece perigoso. Numa das sequências mais expressivas do longa, Phil, num gesto passivo-agressivo, silencia a sua nora usando a música para envergonhá-la. Ele não podia parecer mais fraco que ninguém. Cada gesto, dos afetuosos aos mais odiosos, tem algo a revelar sobre a identidade dos protagonistas. A hostilidade gratuita do cowboy para com o seu sobrinho, o deslocado Peter (Kodi Smit-McPhee, ótimo), esconde a identificação. A relação tóxica entre irmão e cunhada, por outro lado, escondia a angústia de um homem sozinho. Um tipo que renega a civilização. Porque aquele homem tão aparentemente forte tinha medo? Eis a questão que redimensiona "Ataque dos Cães".

A partir do olhar curioso daquele que representa o futuro no cenário proposto, Campion investiga os segredos de um homem calejado para sobreviver. Benedict Cumberbatch, na atuação da sua vida, absorve a brutalidade do velho Oeste numa performance áspera repleta de sutilezas. Os seus detestáveis atos de força dizem tanto quanto os seus comoventes lampejos de fraqueza. Cumberbatch ajuda a demolir uma casca que durante muito tempo aprisionou os heróis do faroeste. Ele é o retrocesso em pessoa. Ele se isola para pertencer. Ele é apenas um refém da sua natureza.

Ao entender isso, Campion humaniza a figura do cowboy mítico num retrato sobre a brutalidade enquanto um repressivo instrumento de defesa. Tudo, no fim, segue girando em torno de temas caros dentro do Western. "Ataque dos Cães" é sobre a SOBREVIVÊNCIA sustentada na base da deformação. É sobre o DESEJO canalizado na agressividade. É sobre a LIBERDADE consumida por imposições tóxicas. É sobre um FUTURO construído não na base do laço, mas na força da afirmação. O faroeste finalmente chegou ao século XXI.

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