sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Crítica | Um musical morno, "tick, tick… Boom!" assume a inquietude de Jonathan Larson num filme que se seduz pelo gênio para tentar personificar o homem


Lin-Manuel Miranda é o rosto de uma Broadway moderna. Seus musicais se tornaram fenômenos culturais norte-americanos ao valorizarem a representatividade latina num período de aversão aos imigrantes. Ele levou a verdade da sua comunidade para os palcos em obras imunes à suntuosidade. Lin-Manuel Miranda é hoje o que Jonathan Larson poderia ter sido. Vou além. Lin-Manuel Miranda deve muito do seu sucesso a ele.


Disposto a trazer a Broadway para o "mundo real", o compositor norte-americano desafiou uma lógica grandiloquente ao cantar sobre o dia a dia. Primeiro o seu. Depois o de uma NY bombardeada pelo vírus HIV, pelas drogas e por um insano estilo de vida. Assim nasceu sua obra prima, o musical Rent. Um hit da Broadway que Larson, tragicamente, nunca pôde experimentar. Isso porque o virtuoso autor, no auge da sua vida, aos 35 anos, faleceu horas antes da estreia da peça, vítima de um aneurisma na aorta.


É fácil entender a admiração de Lin-Manuel Miranda pelo legado de Jonathan Larson. O realizador latino, muito provavelmente, sequer teria conhecido o estrelato se a Broadway não tivesse tornado esse choque de eletricidade nos anos 90. Nada justifica, porém, um retrato tão morno sobre um artista tão radiante. "tick, tick... Boom!" leva as desilusões de Larson para o cinema num filme refém do material fonte. Com base no texto 30/90 (peça assinada pelo biografado e remontada após a sua morte), Miranda é habilidoso ao, num curto recorte de tempo, capturar a angústia de um artista em dúvidas.

O fim da juventude é o norte para uma produção indiscutivelmente imersiva. Fiel ao teor descritivo da obra, um musical sobre o primeiro fracasso do artista, 'a space opera' Suburbia, o diretor nos leva para os anos 1990 guiado pela enérgica presença de Andrew Garfield. O foco está na inconsequência, nas amizades, na música, em NY, nas decepções, no amor… É impossível não se identificar com um artista tão disposto a tudo. Tão aberto aos pequenos (e inconsequentes) prazeres muitas vezes subvalorizados. Tão obstinado na busca pelo sucesso. Miranda, assim como Larson, aborda questões inerentes a essa fase da vida com extrema honestidade.

Numa performance arrasadora, o eclético ator impressiona ao mergulhar num período de dificuldades na vida do compositor. "tick, tick... Boom!" se deixa levar pela inquietude de Larson/Garfield ao estabelecer a relação do protagonista com o meio. Lin-Manuel Miranda, na sua estreia como diretor no cinema, é honesto ao exaltar a imaturidade virtuosa de um gênio em criação.

O melhor do longa nasce quando o roteiro sugere o choque de realidade. Quando "desnuda" o compositor à medida que expõe a preocupação do amigo publicitário (Robin de Jesús), ou a frustração da namorada bailarina (Alexandra Shipp). Aqui nós chegamos perto de conhecer o verdadeiro Jonathan Larson. O egoísmo dele tem algo a dizer. A insensibilidade também. A devoção quase que total à arte surge como um sintoma.

É fascinante ver como Miranda buscou informações sobre a intimidade do artista para traduzir o caótico processo de criação dele. Um estudo, ao mesmo tempo, comovente e enervante. Ali está um jovem prestes a se tornar adulto. Ali está um jovem pressionado por um estilo de vida que ele não poderia sustentar. Ele tem pressa. Ele precisa se afirmar aos olhos de outros. Quem nunca se sentiu assim? "tick, tick, Boom!", entretanto, não parece interessado nas falhas do gênio. No estrago causado por ele nesta busca. Nós conhecemos o virtuoso. O músico carismático. O amigo querido. Não o homem.

Miranda parece preso ao otimismo agridoce do material fonte. O longa dedica mais tempo a detalhes irrelevantes da rotina do compositor (o musical sobre um dia cheio numa lanchonete em homenagem ao saudoso Stephen Sondheim é de um vazio lindamente filmado) do que aos sentimentos do artista. Na ânsia de homenagear a história da Broadway a partir do legado de Larson, o cineasta investe em referências herméticas. As intenções são justas. A execução, contudo, revela a crise de prioridade do longa. Enquanto as canções refletem as dúvidas do compositor, a direção de Lin-Manuel Miranda parece sempre confiar que ele está no caminho certo.

Uma opção que dilui o impacto das ricas composições (a maioria delas interpretadas em números musicais vigorosos) e a relevância dos personagens de apoio. Os relacionamentos de Larson, em especial, são conduzidos sem grande esmero narrativo. "tick, tick… Boom!" frustra, de fato, quando olha para o meio. A potente voz de Jonathan Larson é subaproveitada quando o assunto é o contexto em que ele está inserido. É muito "eu" para pouco "nós''. Ao se render facilmente à subjetividade do artista, Miranda dilui o seu papel enquanto "maestro" desta adaptação. Ele prefere cantar as trivialidades. O drama dos amigos soropositivos, por exemplo, é um mero complemento aqui.

"tick, tick… Boom!", no fim, até consegue sugerir pressa. Lin-Manuel Miranda não precisa capitalizar em cima da morte do protagonista para discutir a efemeridade da vida. A simples busca dele já é o bastante. Ainda assim, com um olhar reverente sobre esse influente artista e a relação dele com a sua arte, o longa termina dependendo demais da subjetividade do público para emocionar.

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