sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Critica | Livre do fardo da realidade, "A Nuvem Rosa" desafia o público com uma visão reflexiva (e premonitória) sobre o isolamento social

 Uma nuvem reconhecível


É fascinante (e apavorante) descobrir que um dos retratos mais autênticos sobre a crise humana gerada pelo surto da COVID-19 foi rodado antes da pandemia. Livre das amarras do factual, A Nuvem Rosa sugere um cenário distópico para repercutir a reação de um ”bicho social” como o ser humano diante do isolamento compulsório. Seguindo uma lógica antinatural, o drama de Iuli Gerbase é ressignificado pelo contexto. Nós nunca saberemos qual seria o efeito que o longa rodado em 2017 causaria caso lançado num cenário de “normalidade”. Nós perdemos este direito. O que revela a face mais assustadora desta imagética produção. Se reconhecer nas desventuras de um casal obrigado a encarar o isolamento juntos é por si só algo angustiante. 

A distopia ganha um ar instantaneamente factível. A Nuvem Rosa não impacta somente em função da sua “clarividência”. A sinistra coincidência apenas potencializa esta crônica (agora social) sobre as neuroses geradas pela desconexão. Embora desastrada, a apressada abordagem proposta dialoga com o crescente senso de urgência que contamina o cenário. O isolamento cria novos laços. O isolamento catalisa novos conflitos. O isolamento perturba e protege. Toma e dá. Aquece e esfria. A partir da complexa relação entre a aflita Giovana (Renata de Lélis, pura emoção) e o paciente Yago (Eduardo Mendonça, pura razão), o roteiro rompe com a literalidade da rotina ao sugerir um olhar mais profundo sobre feridas abertas. Livre do fardo da realidade, Gerbase decide levantar questões polêmicas. O isolamento, por si só, é mesmo um fardo inquestionável? Se é, porque, por opção própria, muitos preferem se “desconectar” a viver numa engrenagem desregulada?  

A cineasta se apoia no elemento distópico para abordar a nossa crise de prioridade enquanto parte de uma estrutura social. A Nuvem Rosa intriga ao antecipar um cenário de muita dor, incerteza e tristeza com base apenas na nossa falha relação com o meio. Gerbase provoca ao sugerir o isolamento como parte da nossa realidade num ambiente regido por relacionamentos virtuais, pela postura antissocial e pela diluição de laços físicos. A tal nuvem assassina surge para expor os personagens.

O longa usa a transição temporal para mergulhar na psique destes indivíduos. Para entender a reação deles ao novo cenário. Iuli Gerbade torna tudo mais complexo ao enxergar a funcionalidade no isolamento. A desconexão do mundo físico pode não ser algo tão hostil assim. Não para os já esquecidos. Ou para os abandonados. A realizadora sugere outras possibilidades ao trazer a questão da virtualização das relações humanas para o centro da trama.

A culpa era mesmo da nuvem? Ou apenas um reflexo de um efêmero (e errático) estilo de vida? O homem que trabalha em contato direto com o corpo físico não parece tão suscetível aos efeitos do isolamento. Já a mulher que vivia imersa no mundo virtual sucumbe ao aprisionamento gerado pelo evento. Mesmo num cenário tão limitante, a falta de diálogo se revela um problema. O velho status quo permanece. O roteiro é inteligente ao sugerir o isolamento como uma resposta ao males do meio urbano.  Yago e Giovana escolhem o isolamento sempre que confrontados. O que diz muito sobre a realidade dos dois. O drama, no fim, nasce de fato das oportunidades perdidas. Do abraço nunca dado. Do porre nunca tomado. Do banal que se torna fundamental.

Gerbase se enternece pelos personagens à medida em que eles reconhecem o valor das pequenas coisas. À medida que o desespero se torna inalienável. Por trás da estranhamente convidativa (e estilosa) fotografia em tons de rosa, azul bebê e violeta existe uma obra pensada para nos tirar da inércia. Um filme que se abastece da angústia dos protagonistas para incomodar. A Nuvem Rosa desconforta não por remeter aos dias em que vivemos, mas por lembrar daquilo que deixamos de viver. Uma experiência extrema, mas real como poucos filmes pós-pandemia conseguiram ser.

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