Elegância e contundência
Steven Soderbergh é um cineasta com voz e estilo. Um realizador inquieto capaz de usar as engrenagens de Hollywood para expor as idiossincrasias do mundo em que habitamos. A realidade sempre alimentou a sua verve criativa. Em Nem um Passo em Falso, mais uma vez, este questionador tempero urbano faz toda a diferença. É impressionante ver como o diretor “ressignifica” o conceito de máfia trazendo o crime organizado para o mundo corporativo. O poder está nas mãos de quem tem o dinheiro. Neste perverso ecossistema, o ex-presidiário Curt (Don Cheadle, serenamente ardiloso) era um peixinho dourado. Com a cabeça à prêmio, o criminoso é contratado para um serviço que deveria ser simples: sequestrar a família de um contador (David Harbour, cativante ao traduzir o desespero de um homem comum envolvido em algo perigoso) enquanto ele partia para recuperar um documento que interessava ao seu contratante. Curt só queria os US$ 5 mil para reconstruir a sua vida em outro lugar. Escapar deste cenário movido pela ambição, porém, não é fácil.
Alguns cineastas estilizam a ação sem propósito. Steven Soderbergh não é desses. O realizador adota os enervantes planos angulados (o uso da lente Olho de Peixe é um luxo) para traduzir a sensação de clausura dos personagens. Eles estão envolvidos em (ou por) algo maior. A luminosa fotografia em tons amadeirados do próprio diretor ilustra o círculo vicioso em que Curt, Ronald (Benicio Del Toro, destilando veneno) e todos os peões deste tabuleiro estão inseridos. Soderbergh usa a imagem para criar sensações. Para potencializar a tensão. O seu texto, porém, é quase tão angustiante. Nem um Passo em Falso usa o micro para atacar os desvios de uma estrutura social desregulada. Todos os personagens possuem as suas “dívidas”. Todos possuem uma zona cinza que o roteiro, nos detalhes, explora com maestria. Ao invés de focar em explicações que contextualizem a trama, Soderbergh compra a imperfeição dos seus protagonistas. Enxerga a imprevisibilidade na inconsequência deles e também no ambíguo código moral que rege este meio.
Num só monólogo, um daqueles toques de mestre que redimensionam tudo o que estamos assistindo, Steven Soderbergh leva a obra para um outro rumo. A ganância ilusória de Curt e Ronald permite que a trama fure a “bolha” dos filmes de máfia. Chegue ao lugar que o gostaria para questionar o nosso status quo. E isso, claro, sem sacrificar a natureza tensa e imersiva do plot. Guiado por um elenco pesadíssimo (o pragmatismo cansado impresso em tela pelos experientes atores só realça a aura acidental da premissa), Nem um Passo em Falso aponta a sua mira para um outro tipo de ameaça. Um novo conceito de crime organizado. Mais” limpo”. Mais cerebral. Mais perigoso.
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