sábado, 9 de janeiro de 2021

Crítica | Pacarrete

O amargor dos desvalorizados

Em sua essência mais pura, Pacarrete é uma verdadeira ode à arte, à verdade do artista e principalmente à resiliência daqueles que nunca deixam a chama apagar. No seu longa de estreia, o promissor cineasta Allan Deberton provoca um misto de sensações ao usar uma personagem da sua infância como o ponto de partida para um dilacerante estudo sobre a desvalorização artística no nosso país. Uma obra de natureza íntima, mas com uma crítica abordagem abrangente. Moradora da pequena Russas, Pacarrete (Marcélia Cartaxo) sonhava em levar o balé para os seus vizinhos de cidade. Reconhecida pelo seu temperamento ácido, ela se viu obrigada a conviver com a fama de louca. A sua dedicação à dança, porém, era maior do que qualquer obstáculo. Quando a prefeitura de Russas decide fazer uma festa para comemorar os 200 anos da fundação do município, Pacarrete resolve convencer os responsáveis pelo evento a investirem numa apresentação sua. Uma jornada excruciante marcada pela resistência geral, pela insensibilidade e pela falta de suporte a uma idosa que só queria defender a riqueza da arte. 

Inspirado pelo espírito indômito da protagonista, Allan Deberton fascina ao exaltar a garra de um artista num país cada vez mais acéfalo culturalmente. Pacarrete não é um filme elitista. Não diminui uma manifestação pretensamente artística para exaltar outra. A protagonista só queria um espaço. Um palco. Uma fração da atenção popular. A partir da reação da cidade à figura da professora de dança aposentada, o cineasta sublinha o viés crítico da sua obra ao mostrar a dura rotina de um artista num país como o Brasil atual. Comandado por pessoas que pensam a arte como um instrumento de alienação. Por empresários que defendem a pasteurização. Deberton é enfático ao tornar a sua obra um grito de resistência dos desvalorizados. Tal qual Pacarrete (a personagem), o cinema brasileiro sofre. Há muito não se investia tão pouco nele. Há muito os atores\diretores\criadores não enfrentavam tamanha recessão. Pacarrete (o filme) surge como uma magnânima resposta a desvalorização. É cinema feito com esmero. Com um enorme valor de produção. Com um olhar atento para a insensibilidade alimentada pela ignorância. O realizador transforma o imersivo cenário em um palco. A iluminação, ora natural, ora incidental, traduz o misto de nobreza e decadência da protagonista. A intimista fotografia em tons vivos de Beto Martins descola Pacarrete da realidade como uma verdadeira estrela dentro do seu show. Os holofotes, finalmente, estão sobre ela. Uma figura facilmente destacável. 

Logo na cativante sequência de abertura, Allan Deberton é cuidadoso ao traduzir a singularidade da sua protagonista. A leveza nos seus passos enquanto varre a calçada contrasta com a rispidez com que ela trata as pessoas ao seu redor. A sua casa, amarela, rústica e acolhedora, está “encaixotada” entre duas mega lojas. Pacarrete foi engolida pelo tempo. Pacarrete não tolera este fato. Embora a crítica cultural embutida no arco da protagonista seja expressiva, o melhor do longa está na delicadeza com que o cineasta invade a intimidade desta mulher. Uma dançarina consumida pela rispidez daqueles que a cercam, pela falta de incentivo e pela frustração dos sonhos nunca concretizados. O humor anda de mãos dadas com a melancolia. Se num primeiro momento a mordacidade de Pacarrete garante algumas risadas, à medida que a trama avança Deberton é contundente ao capturar o efeito da amargura na identidade da personagem. Por trás das respostas ferinas existe o rancor. Por trás dos charmosos figurinos existe a tristeza. Por trás da postura combativa de Pacarrete existe o cansaço. A arte, impressa em cada canto da casa da dançarina (palmas para a direção de arte), perdeu valor fora dela. O que, de certa forma, reflete a posição dela aos olhos da comunidade. 

Allan Deberton filma a luta da protagonista por um palco como se fosse uma espécie de canto do Cisne. Não existe espaço para a condescendência aqui. O roteiro preza pela realidade ao desenvolver a jornada de Pacarrete. As portas fechadas machucam tanto quanto a solidão, o esquecimento, o deboche e o desprezo. As portas fechadas abrem uma janela para a psique da personagem título. A rejeição revela a raiva dela, revela também a desilusão, os medos e a desconexão. Ali estava uma mulher ferida pela realidade. O balé a ajudava a suportar a dor. A sua querida irmã Chiquinha (Zezita Matos) também. Ela precisava disso para seguir lutando. Sem eles ela estaria só. A insanidade, aqui, sugere a imersão no mundo dos sonhos. Sugere um mecanismo de defesa. Nele Pacarrete era feliz. Nele Pacarrete era livre. Aos olhos de Deberton, mais limitante do que o peso da idade é a falta de apoio. A morte de um artista é o teatro vazio. A catártica sequência final é emblemática. Nela o cineasta funde o estudo de personagem à crítica cultural. Nela enxergamos a raiz de tamanha angústia e desespero. 

Nada mais justo que num filme sobre o valor da arte, a artista tivesse todo o espaço para brilhar. Marcélia Cartaxo não é só o rosto de Pacarrete. Ela é a voz, o coração, a alma desta pérola do cinema nacional. Numa performance arrebatadora, a atriz mergulha na psique da sua personagem disposta a nos fazer compreendê-la. Cartaxo é cuidadosa ao realçar a verdade escondida na caricatura. A imagem da infância idealizada por Allan Deberton é preenchida por uma interpretação repleta de sentimento. Cada gesto da protagonista é revelador. Cada palavra dita com a sua peculiar entonação ganha um novo sentido. A atriz fala através do corpo, fala através do olhar, fala através da sua dança. Uma presença imagética explorada com enorme sutileza pelo realizador. Nas sequências mais íntimas, em especial, a expressão entristecida de Cartaxo é ao mesmo tempo linda e devastadora. Através do espelho ela toca o espectador. É impossível não se emocionar com os planos fechados pensados por Deberton. É impossível não experimentar o sofrimento da personagem. Em Pacarrete, o fim é imposto por mentes insensíveis. O fim é o apagar das luzes. O fim é o silêncio após uma bela performance. Um denso (e expressivo) estudo sobre a decadência capaz de se alimentar da desilusão de um artista para defender o valor da arte.

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