sexta-feira, 19 de abril de 2019

Crítica | Caçadora de Gigantes

Os gigantescos obstáculos da vida real

Sou fã de fábulas cinematográficas. Um subgênero fértil que, inclusive, já foi tema de um Top 10aqui no Cinemaniac. Gosto, em especial, da capacidade de alguns realizadores em utilizar a fantasia para tocar em questões densas e inquestionavelmente realísticas. Em tratar a magia como uma espécie de refúgio para um mundo que assusta, que acua, que entristece. Como não recordar, por exemplo, de títulos como o revigorante A História sem Fim (1984), o cativante Babe: Um Porquinho Atrapalhado (1995), o visceral O Labirinto do Fauno (2006), o emocionante Ponte Para Terabitia (2007), o rebelde Onde Vivem Os Monstros (2009), o crítico Deus Branco (2015) e o complexo Sete Minutos Depois da Meia Noite (2016). Obras inesquecíveis que, por trás do elemento fantástico, escondem comentários pertinentes sobre alguns dilemas cada vez mais presentes no nosso dia a dia. Uma pena que, nos últimos anos, esse tipo de filme tenha caído tão em desuso. Ou então ficado “preso” ao criativo universo da animação. É triste ver o completo desdém para produções como o intenso Caçadora de Gigantes. Lançado diretamente via ‘streaming’ no Brasil, algo que tem se tornado recorrente dentro do segmento, o instigante longa dirigido por Anders Walters impacta ao tentar entender a mente de uma inocente adolescente às avessas com os gigantescos obstáculos da vida real. Com um crescente clima de mistério e uma abordagem pouco condescendente, o realizador é cuidadoso ao escancarar os prós e os contras em torno da fabulesca realidade criada pela imaginativa protagonista, tocando em feridas bem realísticas enquanto desbrava a jornada de uma guerreira disposta a tudo para manter a salvo aqueles que a amam. 



Adaptação da graphic novel homônima escrita por Joe Kelly e J.M Ken Nimura, Caçadora de Gigantes provoca um misto de sensações ao não se encantar pelo comportamento da sua protagonista. Embora a verdade dela nunca seja questionada, Anders Walters é enfático ao mostrar que estamos diante de alguém com verdadeiros problemas. Com a intenção de manter os segredos em torno dos motivos por trás de um comportamento tão excêntrico, o diretor esbanja sensibilidade ao primeiro nos situar quanto a rotina de Bárbara (Madison Wolfe). Uma jovem aparentemente feliz e com um propósito de vida: matar os gigantes que, segundo ela, ameaçariam a vida na sua pequena cidade. Sob os cuidados da sua atarefada irmã, a pressionada Karen (Imogen Poots), a adolescente vivia quase que sempre inserida neste mundo de fantasia, preparando armadilhas e porções a espera do dia em que teria que se defender de tamanha ameaça. Uma rotina solitária e peculiar que ganha um novo rumo quando ela conhece a curiosa Sophia (Sydney Wade), uma garota da sua mesma faixa etária que chega na vizinhança de mudança da Inglaterra. Igualmente só, a adolescente encontra em Bárbara a chance de construir uma nova amizade. Não demora muito, porém, para ela perceber que não estava diante de uma menina comum, principalmente quando ela descobre os segredos escondidos neste mundo de criaturas mitológicas e gigantes.


Com um olhar humano sobre a desordem que acometia Barbara, Caçadora de Gigantes comove ao revelar as sequelas impostas por esta tentativa de fuga da realidade. Mesmo sem nunca sacrificar o viés fabulesco, os gigantes são imponentes e por vezes até assustadores, Anders Walter acerta ao focar a maior parte do tempo no mundo em que vivemos. Se por um lado o longa parece se orgulhar da coragem da protagonista e da riqueza do universo em que ela parecia tão inserida, por outro não titubeia em expor as consequências de tal comportamento, o seu isolamento, a sua agressividade e principalmente o seu distanciamento da realidade. Ela é pedante, antipática, antissocial. Não é uma personagem de fácil aceitação. Além disso, ao contrário dos filmes citados no primeiro parágrafo, a fantasia, aqui, não surge tanto quanto um refúgio. Um lugar de conforto. Mas como uma defesa. Existe sofrimento, angústia, solidão, algo que, mesmo antes do argumento invadir a psique da personagem, já soa claro. Bárbara parece se preparar para algo, mas não sabe muito bem o quê.


Impecável ao estabelecer a sensação de disfuncionalidade em torno da rotina protagonista, Anders Walter é igualmente habilidoso ao gradativamente tocar na raiz dos seus problemas pessoais. Fazendo um inteligente uso de tipos como a gentil Sophia e a preocupada Mrs. Mollé (Zoe Saldana), o roteiro pouco a pouco consegue invadir a psique de Bárbara. A amizade entre as jovens, por exemplo, surge como um sopro de normalidade na realidade da protagonista, algo que, espontaneamente, parece obriga-la a se afastar do seu mundinho. O mesmo, aliás, podemos dizer da instável relação entre a adolescente e a psicóloga. Sem querer revelar muito, é a partir desta confrontadora dinâmica que podemos enxergar um vislumbre dos conflitos de Bárbara, da sua dor reprimida canalizada no universo criado por ela. O longa acerta ao não reduzir tudo aos frutos de uma mente criativa. Por trás do seu inocente modo de encarar os problemas existe sofrimento. Alguém que precisa de atenção, de tratamento. Os gigantes, então, surgem como um símbolo de um obstáculo muito maior. Tão ameaçador aos olhos de uma criança. À medida que a trama avança, Walter é astuto ao sugerir pistas da verdade escondida neste mundo mitológico. Ao entender a sua origem. Ao explorar o significado por trás disso tudo. Nas entrelinhas, é legal ver o esmero do roteiro em tocar em temas delicados como a depressão, a morte, a perda da inocência e o amadurecimento precoce. Temas complexos e muito bem justificados pelo consistente texto que só reforçam a carga dramática do comovente último ato.


O coração de Caçadora de Gigantes, entretanto, reside na intensa performance de Madison Wolfe. Consciente da proposta realística do longa, ela interioriza o turbilhão de emoções da sua Bárbara com naturalidade, criando um tipo ora corajoso, alegre e combativo, ora agressivo, frágil e desequilibrado. Embora o filme não foque em questões clínicas, Wolfe não vacila em criar uma personagem com nítidos problemas emocionais, uma menina que encontrou no mundo da imaginação uma pueril forma de lutar contra algo tão inevitável. O mesmo, aliás, podemos dizer da singela performance de Sidney Wade. Mais do que nos conduzir pela mitologia criada por Bárbara, a sua Sophie enche a tela de realismo ao traduzir o estranhamento para com os atos da protagonista. Por mais que o gradativo elo entre elas seja nítido, Wade consegue expor no seu olhar o misto de medo, compaixão e espanto da sua personagem. Algo que só ajuda a potencializar o nosso incômodo com a imersão da “caçadora” neste mundo fantasioso. Num elenco majoritariamente feminino, outro dos bons predicados da obra, precisamos destacar também a contida performance de Zoe Saldana. Na pele da zelosa psicóloga, ela traz uma madura perspectiva adulta sobre os fatos, conferindo peso a sua personagem mesmo com um menor tempo de tela. É através delas, na verdade, que enxergamos a face mais arredia de Bárbara, mais perigosa, uma sensação que se torna mais nítida nas feições de preocupação expressas por Saldana.


Embora subaproveite alguns laços na tentativa de construir os mistérios em torno da raiz dos conflitos de Bárbara, a personagem de Imogen Poots, em especial, merecia maior espaço, Caçadora de Gigantes usa os devaneios de uma mente infantil como a porta de entrada para um estudo de personagem complexo e intimista. Um retrato inteligente sobre os lúdicos mecanismos de defesa de uma adolescente na luta contra uma das poucas certezas da vida. Um gigante nem sempre cruel, mas indiscutivelmente implacável.

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