quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Crítica | The Boys in The Band

Uma festa triste


Em 1967, Stanley Kramer levou as tensões raciais para o cinema no emblemático Adivinhe Quem Vem Para o Jantar? Com uma linguagem teatral e um tema urgente em mãos, o cineasta, com base no texto de William Rose, debateu o racismo enraizado num EUA em ebulição ao investigar os desdobramentos de uma relação inter-racial no seio de uma família pretensamente liberal. Uma obra prima! Tem muito deste clássico sessentista em The Boys In The Band, a mais nova produção de Ryan Murphy para a Netflix. Desde a linguagem, passando pela natureza provocante da obra e chegando a urgência temática. Uma clara referência para a peça de 1968 do dramaturgo Mart Crowley, que, infelizmente, faleceu no começo de 2020 aos 84 anos. Qual seria o efeito que um homem claramente homofóbico causaria numa confraternização entre amigos abertamente gays? Um plot inquietante que, infelizmente, é limitado pela dificuldade da adaptação em canalizar a sua energia reprimida. 


O longa dirigido por Joe Mantello é assertivo ao expurgar os fantasmas escondidos no armário. É assustador notar que uma obra de 52 anos segue tão reconhecível. O cineasta é habilidoso ao, mesmo nas entrelinhas, sublinhar os conflitos escondido na aparência afirmativa. Em 1968, ano em que a trama era situada, o mundo não lidava com o drama LGBT. Aquela festa era uma espécie de refúgio para homens confiantes se libertarem por completo das amarras sociais. Uma zona segura repentinamente invadida por um amigo do anfitrião, o contraditório Michael (Jim Parsons). Quando Alan chega o mundo lá fora o acompanha. O clima festivo é repentinamente tomado por desconfiança, incomodo, silêncios forçados e conflitos. As exigências são outras. Mantello, até aqui, é cuidadoso ao capturar esta mudança de energia. Ao sugerir dilemas que não pareciam tão claros. Imposições que claramente machucavam. Os conflitos, graças ao dinamismo do roteiro, crescem com naturalidade. Nos detalhes The Boys in The Band diz muito. Por trás da plenitude de Donald (Matt Boomer) existe vulnerabilidade. Por trás do desconforto de Hank (Tuc Watkins) existe maturidade. Por trás do histrionismo Emory (Robin de Jesus) existe insegurança. Por trás do ódio de Alan (Brian Hutchison) existe dúvida.

Enquanto investiga o todo a partir deste microcosmo, um simples apartamento, Mantello entrega tudo aquilo que o filme precisava. Captura a tensão experimentada por eles no dia a dia e o efeito gerado por ela na identidade de cada um dos envolvidos. É legal ver como, ao contrário de Adivinhe Quem Vem para o Jantar?, o clima aqui não é de simples reconciliação. Mesmo dentro da comunidade LGBT existe discordância. O roteiro assinado pelo próprio Mart Crowley valoriza a heterogeneidade. Deste choque de mentalidade nascem as melhores passagens da obra. O desajuste causado pelo intruso reabre feridas aparentemente cicatrizadas. Traumas explícitos e implícitos. Expostos e reprimidos. No momento em que a “bomba” explode, no entanto, o longa se desencontra. Toda a naturalidade do primeiro ato se esvai diante da maneira forçosa (e um tanto vaga) com que o argumento invade a intimidade dos personagens. Sempre na base da imposição, da troca de farpas vazia e das ofensas venenosas gratuitas. Para catalisar a trama, por exemplo, Michael é transformado num inquisidor. Falta ao argumento solidez para construir estas mudanças de curso. As suas provocações, embora compreensíveis, refletem um senso de angústia nunca aprofundado pelo script. Enquanto alguns personagens ganham nuances tridimensionais, outros são basicamente reduzidos à meros arquétipos. O aniversariante vivido por um afetadíssimo Zachary Quinto é irritantemente oco.

The Boys In The Band, repentinamente, assume uma natureza tóxica. Uns podem tratá-la como uma reação ao mundo em que eles vivem. Como um raio-x de um grupo de homens impedidos de viver a sua liberdade com plenitude. Uma visão totalmente aceitável. O roteiro, porém, ao assumir a instabilidade dos protagonistas como a sua, impede, a meu ver, que o espectador identifique estas nuances dramáticas insinuadas. O que enfraquece o nosso elo com todos os personagens. Alguns totalmente subaproveitados. Por mais que o talentoso elenco capitaneado por um dedicado Jim Parsons mergulhe nas emoções deste grupo de homens com afinco, o texto, por diversas vezes, fica um degrau acima das atuações. Um convite a dispersão. Joe Mantello, por sua vez, peca também com uma direção muitas vezes errática. Enfático nas passagens mais teatrais, o cineasta derrapa quando tenta quebrar o recorte naturalista. Todos os flashbacks são absolutamente redundantes. Só não são mais dispensáveis que o clichê do stripper estúpido interpretado por Charlie Carver. Uma tentativa desastrosa de criar um alívio cômico. 

Com uma energia vibrante, mas uma condução por vezes cansativa e relapsa, The Boys in The Band fisga ao não reduzir tudo ao debate sobre o estrago causado pela homofobia. Isso também seria uma redundância. Ao rebater o ódio com toxicidade, porém, Mantello se perde na tentativa de encontrar a verdadeira voz dos seus complexos personagens. O problema não está na reação deles (totalmente compreensível e até identificável), mas na incapacidade do longa em se aprofundar na raiz delas. Um filme que, ao contrário de Adivinhe Quem Vem Para o Jantar?, depende demais da capacidade do público em preencher as lacunas deixadas pelo histrionismo. 

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