sábado, 26 de setembro de 2020

Crítica | The Quarry

Racismo, perdão e culpa

Um detalhe meramente cênico é capaz de definir a natureza do incompreendido drama The Quarry. Na cidade do interior em que a trama do diretor Scott Teems é situada, Igreja e Tribunal dividem o mesmo espaço. Nada mais sintomático num filme sobre a relação entre o perdão e a culpa num cantão dos EUA regido por um sistema tão falho quanto os seus personagens. Vendido erroneamente como um thriller enervante, o longa troca a adrenalina pela corrosão lenta ao narrar a jornada de um homem em fuga que, após matar um pastor alcoólatra, decide assumir o seu lugar numa cidadela norte-americana. Com base no livro homônimo do escritor Damon Galgut, Teems se preocupa em estabelecer o peso de cada ato. A realidade é o norte de um roteiro capaz de tocar em feridas abertas dentro de uma sociedade cansada de conviver com as mesmas injustiças. 


A oportunidade que surge para David vem manchada de sangue. Numa comunidade majoritariamente latina, ele flerta com a redenção na religião. A sua fragilidade física\emocional o aproxima dos carentes fieis. Eles se identificam na franqueza do personagem. É interessante como, neste primeiro momento, Teems usa a Igreja como um espaço para uma confissão velada. As passagens bíblicas escolhidas por ele ilustram a sua dor, os seus tormentos, a sua angústia. A culpa, impressa nas feições apáticas do extraordinário Shea Whigham, é investigada de maneira quase sempre silenciosa. Embora vez ou outra o diretor revele certa insegurança ao interferir no naturalismo proposto com alguns expositivos insights sobre as dúvidas do “pastor”, o cineasta compensa ao tratar a jornada do protagonista quase que como um processo de penitência. 


Ele só queria encontrar o perdão. Os desdobramentos dos seus atos, no entanto, ganham um novo contexto quando a Lei do homem passa a ditar as regras. É aqui que o filme passa a ter um caráter mais social. A sua chegada na cidade causa um abalo numa frágil estrutura. Sem um pingo de maniqueísmo, Teems é cuidadoso ao escancarar o racismo naquela região e transformá-lo em mais um obstáculo na jornada de redenção de David. Mais um fardo para ele carregar. À medida que o policial vivido pelo sempre intenso Michael Shannon mergulha no seu caso, David é obrigado a colocar as suas novas convicções em cheque. O que seria mais valoroso: o perdão de Deus, ou o perdão do homem? Uma questão excruciante que, graças ao comedimento narrativo de Teems, potencializa a carga dramática da obra. 


Na falta de tensão existe peso narrativo. Na falta de suspense existe um contemplativo estudo personagem. Em sua segunda metade, o diretor é habilidoso ao explorar as contradições dos personagens. A culpa expressa nas feições do (branco) forasteiro é associada a pele do (hispânico) garoto problema da região. Nas entrelinhas, o longa destrói as barreiras invisíveis ao tratar os latinos como um sopro de esperança nos respectivos futuros dos homens de Deus e da Lei. Tanto o arredio Valentin (Bobby Soto, explosivo), quanto a solitária Célia (Catalina Sandino Moreno, subaproveitada) surgem como a chance de redenção. Estaria David disposto a se sacrificar em prol da correção de uma injustiça? Estaria John disposto a quebrar círculo de precnceitos na busca por justiça? Dois arcos sólidos que, costurados pela vigorosa montagem desritmada, ajudam a atenuar as evidentes soluções convenientes e a falta de foco nas nuances dramáticas do núcleo hispânico. 


Talvez o principal problema do longa. Célia, em especial, merecia um desenvolvimento mais profundo. Uma falta de voz que, involuntariamente ou não, dialoga com o contexto em questão. Em The Quarry, se a lei de Deus conforta, a lei do homem pune. Scott Teems, a partir de um microcosmo tipicamente americano, enxerga o perdão como algo supérfluo quando o peso da culpa é imposto por um sistema frágil e desigual.

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