quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Crítica | Black Box

Um olhar para a deformidade masculina

Fruto da parceria entre a Blumhouse e a Amazon Studios, Black Box é o tipo de raro de thriller que não depende do seu ‘plot twist’ para funcionar. O instigante longa de estreia do desde já promissor Emmanuel Osei-Kuffour nunca reduz tudo a um mistério e\ou a uma revelação. As convenções do gênero servem a construção de algo maior. Um estudo sobre a deformação humana a partir de um suspense psicológico inteligente, imersivo e tridimensional. Tem muito de Amnésia (2000) na forma com que o cineasta desfragmenta a sua história aos olhos do público. Tem muito também de Corra! (2014) e Black Mirror (2011) aqui. As referências não poderiam ser melhores. E é isso que elas são. Apenas referências. 

Com originalidade, o diretor Emmanuel Osei-Kuffour é cuidadoso ao esticar a corda da realidade sem nunca sacrificá-la. Quando um homem vítima de perda de memória decide ser submetido a um tratamento ‘hi-tech’ experimental, o realizador é sagaz ao propor uma insinuante análise da psique masculina. Nolan (Mamoudou Athie) só queria recuperar a autonomia e se reconectar com a sua zelosa filha Ava (Charmaine Bingwa). Só queria voltar a ser um pai presente e confiável. O apagão na sua cabeça, no entanto, torna tudo mais complexo. Que homem ele era no passado? Quem ficou para trás no acidente? Num primeiro momento, Black Box envolve ao permitir que o público participe ativamente da montagem deste quebra-cabeças. O cineasta joga limpo. As peças não poderiam ser mais reconhecíveis. O experimento abre uma janela para a mente do protagonista. Analisa as virtudes e os possíveis vícios. Sem um pingo de didatismo, o criativo roteiro é habilidoso ao aplicar noções da psicanálise dentro da trama, ao explorar os nossos involuntários mecanismos de defesa e ao desenhar o arco do protagonista a partir deles. 

O estudo sobre o subconsciente abre margem para interpretações, dúvidas e sugestões. E se a amnésia fosse uma espécie de proteção? Um ponto de ruptura com um passado traumático? É interessante ver como, nas entrelinhas, o realizador preenche o arco do protagonista com medos identificáveis. A chaga da violência doméstica catalisa o suspense. Embora franco na sua abordagem, Kuffour usa dos seus artifícios visuais\narrativos para proteger os segredos. Nós, tal qual Nolan, somos obrigados a interpretar o que está ao redor nas sequências mais “íntimas”. O que só reforça o nosso elo com ele. O melhor da produção Amazon, no entanto, está no senso de prioridade do roteiro. O que para muitos seria o desfecho, aqui se torna o ponto de partida para uma reviravolta com desdobramentos complexos. O cineasta arquiteta a surpresa com a intenção de se aprofundar nos dilemas morais embutidos nela.

E isso sem um pingo de maniqueísmo. Não existe espaço para a vilania barata. O flerte com o Sci-Fi turbina os conflitos. Os personagens agem e reagem respeitando a sua natureza humana\falha. As possibilidades pensadas pelo script levam Black Box para um outro lugar. Menos intrigante, mais impactante e cinza. Uma potente carga dramática absorvida com intensidade pelo talentoso Mamoudou Athie. O afiado roteiro cresce na performance maiúscula dele. Na maneira com que ele transita pelas nuances do seu Nolan, com que mergulha na ambígua metade final. E isso, é bom frisar, sem sacrificar o clima de tensão. A hipnose é o trampolim para o terror visual. O elemento sombrio impresso na sinistra criatura disforme (interpretada com maestria pelo contorcionista Troy James) tem muito a acrescentar tanto simbolicamente, quanto para o entretenimento. O design de som, em especial, causa uma angústia natural que ajuda a expor a vulnerabilidade dos personagens. 

Por mais que, na transição para o último ato, o roteiro simplifique alguns conceitos\conflitos em prol de um desfecho mais familiar, Black Box surpreende pela sua construção envolvente, pela sua riqueza de detalhes e principalmente pela forma com que usa a ficção-científica e o terror para catalisar o sólido drama proposto pelo plot. Um perigo íntimo e silencioso com consequências muitas vezes trágicas.  

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