sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Crítica | Três Verões

A farsa da ascensão na base de atalhos

Rir da desgraça pode ser tão (ou mais) emblemático do que chorar por ela. O humor sugere reação. A comédia é uma resposta natural a tragédia. Uma compreensão que faz de Três Verões um retrato indispensável sobre a sociedade brasileira consumida pela corrupção. O longa dirigido por Sandra Kogut (Mutum) é inteligente ao normatizar a figura do corruptor. Ao investigar as sequelas geradas por ele sob um prisma novo ao mesmo tempo reconhecível. Nós já sabemos o que é conviver com esta mazela do nosso dia a dia. Nós sabemos o que é ter de andar em ônibus superlotados. Nós sabemos o que é ter de depender de hospitais sucateados. Nós sabemos o efeito gerado pela desigualdade, pelo desemprego, pela insegurança. Estes são temas frequentemente abordados.

Três Verões fascina ao mostrar o outro lado da moeda. Qual é o impacto da corrupção no seio familiar do corruptor? A partir do olhar expansivo de Madá (Regina Casé), a caseira de um figurão da política carioca, Kogut esbanja sagacidade ao enxergar a ironia escondida na tragédia. Como se não bastasse as referências a um certo ex-governador do estado do Rio de Janeiro, o que nos permite preencher as arestas dramáticas, a cineasta é cuidadosa ao, dentro deste peculiar microcosmo, unir algoz e vítima. Não existe espaço para o maniqueísmo aqui. Madá é o público na tela. Ela é a bússola moral. A sua reação de estranhamento aos "vícios" dos poderosos é a mesma que a nossa. A festa, com sushi de salsicha, muito sertanejo, caraoquê e vídeos bregas de casamento, aproxima o público e personagens. Ao contrário de títulos como o recente Parasita, Três Verões trata os protagonistas como produtos de um mesmo meio. As barreiras, embora nítidas, são tênues. Existe carinho na relação entre patrão e empregada. Existe confiança. Existe também oportunismo. Com um olhar humano sobre os fatos, a realizadora consegue enxergar além das aparências. Notar o preconceito escondido na pretensa superioridade da negociante de arte, na total insensibilidade das produtoras de uma peça publicitária, no desdém da família para com o destino dos empregados. 

Embora sem renegar a estrutura dos atos, Sandra Kogut é habilidosa ao acompanhar a queda de um nefasto castelo de cartas em três verões totalmente distintos. O alto astral de Madá esconde o misto de melancolia, indignação e tristeza que alimenta a trama. O clima festivo do primeiro verão contrasta com a angústia impressa nas feições do corrupto vivido por um brilhante Otávio Muller. O clima de resiliência do segundo verão esconde a indignidade experimentada pelos funcionários. É aqui, inclusive, que Kogut concretiza o estrago causado. As perdas, embora rebatidas com humor, são duras e identificáveis. Numa performance radiante, Regina Casé dá um verdadeiro show ao interiorizar a raça desta funcionária fiel, compreensiva e ao mesmo tempo briosa. Mesmo neste cenário de “luxo”, as vítimas são sempre as mesmas. O flerte com a ostentação na casa é apenas ilusório e um tanto ingênuo. Tão efêmero quanto a sensação de pertencimento deles naquele ambiente. No momento em que decide escancarar a farsa, no entanto, Três Verões escorrega no terreno do sentimentalismo.

Na ânsia de potencializar a carga dramática, Kogut quebra a balança tragicômica. Entende que, ao menos por um instante, era necessário sublinhar o doloroso efeito da corrupção na rotina do cidadão sem um pingo de cinismo. Por mais que a sequência em si seja impactante (e brilhantemente construída), os desdobramentos dela sugerem até uma contradição esnobada pelo argumento. Um elemento que, por exemplo, é muito melhor explorado na figura do pai do corrupto vivido por um comovente Rogério Froes. Perto do fim, Três Verões confunde ironia com otimismo. Perto do fim, o longa perde oportunidades de ir além. Perto do fim, Sandra Kogut flerta com um ingênuo conceito de meritocracia regida pelo afeto. O que, embora limite o potencial realístico da crônica social, não atenua o impacto gerado por esta debochada sátira. Um retrato com DNA carioca sobre o destino daqueles que resolveram ascender na base da desonestidade.

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