quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Crítica | O Diabo de Cada Dia

O mal que habita em nós

O ser humano é capaz de corromper até a mais pura das virtudes. Essa é a certeza que o diretor Antonio Campos defende em O Diabo de Cada Dia. A sua mão pesada ao propor uma crônica social travestida de parábola religiosa dialoga com a natureza pessimista da produção Netflix. Não existe espaço para a inocência aqui. Nem tão pouco para sutilezas. O cineasta repercute as sequelas de um indivíduo formado por um meio corrosivo sob uma perspectiva fatalista e ao mesmo tempo realista. Se por um lado o argumento peca ao adotar o maniqueísmo como o instrumento da sua crítica, por outro o longa compensa ao justificá-lo a partir de mazelas assustadoramente reconhecíveis. 

Transitando entre duas linhas temporais numa (fluída) relação de causa e consequência regida pelo determinismo casual, Antônio Campos gera um impacto natural ao usar a brutalidade como um reflexo da distorção criada por nós mesmos. O contexto, os EUA num doloroso hiato entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã, só catalisa a desordem, só potencializa o estudo de uma estrutura social doente regida pelo medo, pela violência, pela crença cega. O cineasta usa o excesso narrativo para questionar a nossa relação com o extremo. Temos o pai que mata na busca de um milagre. O pastor que mata à procura de uma certeza. O fotógrafo que mata para encontrar o sublime na sua arte. O xerife que mata para manter a sua imagem moralista. O Diabo de Cada Dia é categórico ao responsabilizar o ser humano pela corrupção moral\pessoal\religiosa. A culpa, aqui, não está na religião em si (outra vítima da perversidade), mas na maneira com que absorvemos\aplicamos ela. Repare como todas as sequências envolvendo algum tipo de pregação são tão (ou mais) pesadas que as de crimes hediondos. Campos traduz com desconforto visual a alienação escondida num discurso nada reconfortante. É através do fanatismo (sublinhado pelo onipresente narrador) que o realizador escancara a distorcida visão de mundo dos seus personagens, expõe a raiz de um círculo vicioso moldado pela repressão, pela desconexão e pela negligência.

Quantas vezes não cruzamos o caminho de “homens de fé” como os personagens de Robert Pattinson (mais uma atuação singular para a sua conta) e Harry Melling (talvez a grande surpresa do longa)? Quantas vezes não conhecemos “mulheres de fé” como as personagens de Mia Wasikowska (subaproveitada) e Eliza Scanlen (que atriz talentosa!)? São eles que melhor escancaram o efeito da corrosão. Este é um mal identificável. Tão nítido e ao mesmo tempo tão sorrateiro. Um sentimento que Antônio Campos potencializa com os seus planos limpos e luminosos. Com a sua abordagem ora explícita, ora sugestiva. O Diabo de Cada Dia cresce, porém, quando resolve estudar a tênue linha que separa a vítima do algoz. Filho deste mundo quebrado, Avrid (Tom Holland, na performance mais madura da sua carreira) surge como a reposta. Não à toa ele é a peça mais tridimensional do script. Seu pai, o veterano de guerra Willard (Bill Skarsgard, magnífico), o preparou para este mundo. Com lições voluntárias e involuntárias. À medida que o jovem ator assume o protagonismo, Campos é sagaz ao flertar com o faroeste urbano. O fanatismo dá lugar a outro ismo fabricado por mentes traumatizadas: o revanchismo.

Ao trocar o determinismo inicial pela “lei do mais forte”, o cineasta não só energiza a trama, como também volta o estudo para a brutalizada formação masculina na sociedade americana. Tem muito de Onde os Fracos Não tem Vez (2008) aqui. Na inevitabilidade implícita. Na banalização da morte. Na relação entre as escolhas e o acaso. Na falta de um norte explícito. O personagem de Tom Holland, tal qual o protagonista da pérola dos irmãos Ethan e Joel Coen, age por instinto. Suas ações refletem a sua formação falha. Dialogam também com um passado que ainda machuca. Será mesmo que a violência é a única alternativa para alguém que reluta a ser vítima neste cenário? Ou esta é apenas mais uma ilusão gerada por um ambiente distorcido? É essa a questão que fica ao fim de O Diabo de Cada Dia. Embora perca oportunidades com alguns dos seus ricos personagens secundários, vide a dúbia figura vivida por Riley Keough e o seu ambicioso irmão interpretado por Sebastian Stan, Antônio Campos usa o fanatismo religioso como uma espécie de lupa para o estudo da corrupção humana num relato agressivo, por vezes exagerado, mas nunca desconectado da realidade.

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