sábado, 12 de setembro de 2020

Crítica | Queen e Slim

 É hora de reagir

É um erro reduzir Queen e Slim a uma espécie de versão afro-americana do clássico Bonnie e Clyde. Por mais que a alusão à dupla de foras da lei seja evidente, o longa dirigido por Melina Matsoukas não enxerga a transgressão como uma opção. Até esse “direito” é roubado por um sistema racista que asfixia, mata, invade e corrompe. Queen (Jodie Turner-Smith) e Slim (Daniel Kaluuya) só queriam ter uma noite de diversão. Um direito básico interrompido pela violência policial. O roteiro assinado por Lena Waithe (da série Master of None) é inteligente ao tratar o maniqueísmo como uma resposta. Assim como o negro, aos olhos de uma polícia racista, representa uma ameaça, o policial branco, aos olhos de uma cineasta preta, também deve ser tratado como tal. O tipo de generalização que, aqui, faz todo o sentido. 

É dela que nasce a injustiça. É ela que segue vitimando inocentes. Matsoukas, ao contrário de muitas, não está interessada em estudar mais uma vez as sequelas. Em ouvir outra vez as vítimas. Isso já foi feito antes. A cineasta é categórica ao focar nos fatos e na reação a eles. Queen e Slim impacta quando se concentra nos impulsos. Quando traduz, em passagens as vezes até isoladas, os sentimentos impostos pelo racismo. Tanto a repressão e o medo vividos no dia a dia, quanto a liberdade e o empoderamento experimentado após uma reação em legítima defesa. Se falta ao longa peso ao desenvolver o turbilhão de emoções dos dois de forma coesa, sobra inspiração ao, nestes pequenos momentos, analisar o estado de espírito do casal. 

A sensação de pertencimento que emana na cena do bar; ou a de raiva quando o protagonista encara o seu “novo” eu no espelho; ou até a de orgulho quando ouvem de um garoto que eles poderiam se tornar imortais. Matsoukas não foge da raia ao tirar o público da zona de conforto. A violência, filmada com uma brutalidade repentina e assustadora, é pensada para inflamar. Queen e Slim enxerga além da exaltação do afro. Existe culpa, existe conveniência, existe inércia dos dois lados. A cineasta, ao notar isso, sugere uma reação proporcional. O que pode até ser tratado como algo perigoso, mas nunca ilegítimo. Na ânsia de provocar, no entanto, o longa se sustenta vez ou outra em soluções vazias. O paralelo traçado entre uma tórrida cena de sexo e uma inesperada morte, por exemplo, sugere uma relação de causa e consequência um tanto vaga. Algo que se repete, em maior ou menor escala, em vários momentos da película. 

O tipo de desnível que respinga também na construção do elo íntimo entre os protagonistas. O esmero em notar as semelhanças e as diferenças entre os dois ao longo da jornada se esvai à medida que o macro contamina o micro. O que é um tanto frustrante, já que o filme (se) revigora quando mira os momentos de cumplicidade, aqueles em que os dois divagam sobre expectativas, frustrações e o que poderia ter sido a relação em outro contexto. Um predicado, de fato, potencializado pelas marcantes performances de um cativante Daniel Kaluuya e de uma imponente Jodie-Turner Smith. Ela, em especial, interioriza o miso de dor, poder, angústia e raiva reprimida experimentada pela sua personagem com absoluta maestria. Um ‘road movie’ mordaz conduzido com um misto de sensibilidade e contundência, Queen e Slim revolta ao defender que nenhuma estrada é longa o bastante para aqueles que decidem fugir do racismo enraizado em uma nação. 

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