terça-feira, 15 de setembro de 2020

Crítica | Os Mortos Não Morrem

 Sobre Cafés e zumbis

É fácil entender porque Os Mortos Não Morrem dividiu tanto o público e a crítica. Por sua própria natureza ‘gore’, os filmes de zumbi costumam ser repulsivos. O longa dirigido pelo criativo Jim Jarmusch, no entanto, potencializa este sentimento ao investir numa abordagem verborrágica\irônica que contrasta com o clima de tensão voraz que costuma ditar as regras do segmento. O curioso é que, apesar deste viés ‘indie cômico’, o cineasta em momento algum opta por subverter as fórmulas do segmento. Muito pelo contrário. Assim como já havia feito no imersivo Amantes Eternos, um romance dramático vampiresco estrelado por Tilda Swinton e Tom Hiddleston, Jarmusch segue à risca a cartilha deste popular subgênero de horror. O problema, aqui, me parece muito mais na forma do que propriamente no conteúdo. O constante teste de expectativas tende a soar frustrante aos olhos dos mais desavisados. Daqueles que esperam mais uma comédia do tipo (genial) Todo Mundo Quase Morto (2004) ou (impagável) Zumbilândia (2008). 

O que não quer dizer que Os Mortos Não Morrem não seja um filme cômico. Embora respeite os traços mais básicos do subgênero consagrado por George Romero, Jim Jaemusch trata os zumbis como parte fundamental numa sátira implacável sobre a sociedade norte-americana atual. Com um humor mordaz, inteligente, mas nem sempre acessível, o realizador é categórico ao questionar a ordem das coisas nos EUA a partir da pacata rotina de uma cidade do interior do país. Basta ver o personagem de Steve Buscemi surgir com um boné com as palavras “MAKE AMERICA WHITE AGAIN” para perceber o real objetivo da obra. Mesmo neste microcosmo simpático e acolhedor, Jamursch é sagaz ao notar vícios reconhecíveis, ao reconhecer a desigualdade (as crianças no centro de detenção são todas negras ou latinas), a aversão aos estrangeiros (um dos personagens chama os zumbis de imigrantes), o negacionismo científico (o governo - claro - está por trás do apocalipse). 

O ‘plot’ por sinal é bem criativo. Um programa de extração mineral nas calotas polares tira literalmente o planeta Terra do eixo. As consequências são drásticas. Os dias ficam mais longos, os animais mais arredios, a lua mais próxima e os mortos mais vivos. Com base nesta imaginativa premissa, Jim Jamursch faz jus às tradições do subgênero ao tratar o consumismo desenfreado como o grande culpado pelo desajuste. Diante do olhar atônito dos protagonistas, o cansado xerife Cliff (Bill Murray) e o pessimista policial Ronnie (Adam Driver), o cineasta é sarcástico ao tratar os mortos (e por consequência os vivos) como vítimas do comportamento de manada. Os zumbis retornam ao mundo dos vivos guiados por impulsos “capitalistas”. As crianças clamam por chocolate, doces, brinquedos. Os homens cercam uma loja de ferragens. Os mais jovens vagam grunhindo por Wi-Fi. Aos olhos de Jarmusch, esses são os vícios de uma sociedade adoentada, regida por impulsos básicos, pelo apetite comercial. Uma atualização inteligente do conceito trabalhado por George Romero em O Despertar dos Mortos (1978).

Os Mortos Não Morrem, por sinal, funciona plenamente enquanto um genuíno representante dos filmes de zumbi. Como se não bastasse a esperta crítica social, Jim Jamursch capricha no ‘gore’ e na construção da ação. O visual dos mortos-vivos é expressivo. A movimentação lenta e desconforme idem. O clima pessimista\sujo cresce à medida que eles saem da tumba. Por mais que o foco esteja na comédia e não no horror, nos momentos mais gráficos o cineasta irlandês entrega o que se espera de um ‘zombie movie’. O primeiro ataque liderado por um Iggy Pop putrefato é memorável. Em algum lugar do segundo ato, no entanto, o roteiro assinado pelo próprio diretor se perde nas suas pretensões. Na ânsia de não se render a uma abordagem digamos mais comercial, Jarmusch desloca os seus personagens da realidade. Os abandona diante da sua própria sorte\inércia. O viés metalinguístico os limita. Por mais que figuras como a excêntrica espadachim vivida por Tilda Swinton mostre que não era tão difícil assim desafiar os mortos vivos, os protagonistas reagem com certa preguiça. Como se, a partir de um determinado momento, o diretor tivesse cansado da brincadeira. Personagens que poderiam resistir bem mais sucumbem facilmente. Outros são meio que esquecidos pelo roteiro. Se Os Mortos Não Morrem tem um problema, esse é o frouxo senso de sobrevivência da obra. Uma opção que só não se revela mais nociva graças ao talentoso elenco. Bill Murray e Adam Driver riem de si próprio com desenvoltura. Tilda Swinton abraça a esquisitice com o vigor costumeiro. A sumida Chloe Sevigny injeta o misto de desespero\incredulidade que o roteiro tanto precisava. Selena Gomez, Tom Waitts e Danny Glover fecham o elenco principal trazendo características próprias aos seus personagens.

Embora nem sempre encontre o equilíbrio ideal entre a comédia e o horror, Os Mortos Não Morrem se apropria das convenções do subgênero com originalidade ao propor uma excêntrica crônica sobre a sociedade americana atual. Numa realidade em que os zumbis voltam da tumba com sede de consumo, nada mais justo que o ermitão da cidade se torne o interlocutor de uma crítica esperta, reconhecível, mas um tanto esquizofrênica. Jim Jarmusch em sua versão mais errática, mas não menos peculiar.

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