Charlie Kaufman endoidou de vez...
Estou Pensando em Acabar com Tudo é um surto psicológico em formato fílmico. Uma obra refém da sua genialidade patológica. Um jantar com a família do namorado, o introspectivo Jake (Jesse Plemons), leva uma relutante jovem (Jessie Buckley) a um mundo de frustrações e devaneios. Ora com um entristecido olhar lúcido sobre a nossa relação com o tempo, o espaço e as imposições que cercam as nossas escolhas, ora com uma série de afetações estéticas um tanto vazias, Charlie Kaufman "abandona" o espectador num mundo confuso por natureza. O que fica evidente, por sinal, já no elucidativo título. A partir de um estudo de personagem nada ortodoxo, Kaufman, com base no livro de Ian Reed, é sagaz ao analisar os traumas dos seus protagonistas de fora para dentro. Ou melhor, fazer o fora se tornar dentro. Todo elemento cênico tem algo a dizer sobre o estado de espírito deles. Da neve que os isola ao cenário que os abriga. A geografia do filme surge como um mapa intimista para um tesouro melancólico.
As respostas, muitas vezes desconexas, estão ao redor. Na realidade que mais parece um sonho. Na poesia que se transforma em pesadelo surreal. Na efemeridade que escancara a doença da mente. O externo espelha o interno. A direção de arte reflete o estado de espírito da(o) protagonista. As cores\luz da intimista cinematografia de Lukasz Zal (Guerra Fria) são "sugadas" por uma força invisível. O calor é tomado pelo frio. Enquanto se concentra na desordem afetiva do casal, o longa provoca ao, através de soluções textuais\visuais desconfortáveis, expor a verdade para o público com extrema sinceridade. Todas as peculiares sequências envolvendo Jake e os seus pais, magistralmente vividos por Toni Collette e David Thewlis, afligem por sugerirem a desordem afetiva de uma mente presa a memórias vazias, aos erros do passado, a dor do que não foi vivido. Um misto de inércia e falsa sensação de controle que os talentosíssimos Jesse Plemons e Jessie Buckley absorvem com intensidade. Os dois reagem as esquisitices do roteiro com um espanto natural. A câmera de Kaufman, em especial na incomoda cena do jantar, sublinha as emoções dos personagens com um olhar aguçado para as expressões dos atores. A jovem namorada, por sinal, é os nossos olhos neste universo onírico. Mais do que simplesmente reforçar o potencial de imersão proposto pelo realizador, a personagem tem muito a dizer sobre o seu par, sobre as agruras sentimentais dele e sobre os exóticos eventos que os cercam. Nas entrelinhas, inclusive, o diretor, através dela, discute não só a impotência feminina numa relação um tanto tóxica, como também (num esperto exercício metalinguístico) dentro do gênero romântico. Existe uma sequência nada aleatória que ilustra bem a reflexão em torno do estrago causado pela idealização.
Uma pena que, seguindo o ‘insight’ de um dos personagens envolvendo o drama Uma Mulher Sobre Influência (1974), estamos diante de uma produção “bem pensada”, mas “mal planejada”. A esquizofrenia, aqui, corrói a construção narrativa. O verborrágico argumento se revela cansativo. As referências literárias gratuitas. O vai e vem pelas estradas repetitivo. Muitos dos símbolos construídos pelo diretor soam um tanto óbvios e\ou pedantes. Por mais que as hipertextuais discussões artísticas sejam até interessantes, elas não são o bastante para justificar os longos minutos na escuridão de uma mente carente e solitária. Ao contrário das principais (e geralmente despretensiosas) obras de Charlie Kaufman, Estou Pensando em Acabar com Tudo se assume como uma experiência integralmente virtuosa, mas não é. Embora os rompantes de inteligência do texto sejam evidentes, o longa se mostra tão errático quanto os seus personagens. Um filme que, na ânsia de provocar a partir de feridas emocionais inerentes a nossa existência, acaba por sacrificar a sua própria "sanidade".
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