sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Crítica | Power (Project Power)

Poder limitado 


Power sofre de um mal que (infelizmente) tem se tornado recorrente nos originais Netflix: a falta de autoralidade. Num primeiro momento, a gigante do streaming entendeu (a meu ver acertadamente) que precisava de autores para construir um catálogo robusto. Foi assim que ela “contratou” nomes como os de Martin Scorsese (O Irlandês), Bong Joon-Ho (Okja), Alfonso Cuarón (Roma), os Irmãos Safdie (Joias Brutas), Noah Baumbach (História de Um Casamento), David Fincher (Love, Death and Robots) e Michael Bay (Esquadrão 6). Nos últimos meses, porém, tenho notado um movimento inverso. Estrelas da primeira prateleira sendo dirigidas por cineastas pouco conhecidos\expressivos. O que fica evidente em Power. Assim como o recente The Old Guard (um degrau acima na comparação direta), o longa dirigido por Henry Joost e Ariel Schulman (do medíocre Nerve) não enxerga nada além da estilização gratuita. Um plot instigante envolvendo experiências genéticas, pílulas de poder e drama familiar é esvaziado diante da falta de visão dos cineastas. 


Basta um olhar atento para perceber o potencial escondido no roteiro de Mattson Tomlin (do futuro Batman). Uma violenta Nova Orleans sugere desigualdade, racismo, violência policial, abandono estatal, dependência química... Power, por sua vez, não tinha qualquer obrigação de tocar nestes dramas reconhecíveis. Poderia ter abraçado o escapismo e partido para um outro rumo. No momento em que a produção tenta se aproveitar destas mazelas para aquecer o plot, porém, o mínimo era tratá-los com o devido respeito. Algo que nem de longe acontece aqui. Com exceção do arco da independente Robin (Dominique Fishback, à vontade em cena), estes problemas crônicos são abordados com enorme descuido. O que fica claro, por exemplo, na maneira constrangedora com que o script explora a questão do preconceito racial numa determinada cena. Na ânsia de valorizar o estímulo visual em torno deste cenário urbano decadente, Henry Joost e Ariel Schulman sacrificam a natureza social da obra. Se sustentam, como inúmeros blockbusters, na estilização da realidade. 


A violência gráfica, por exemplo, perde sentido quando o próprio argumento se desconecta do contexto. O “vilão” vivido por um imagético Rodrigo Santoro é de uma pobreza inacreditável. A dupla de cineastas não consegue enxergar o mal através da super-poderosa droga. Tudo se reduz a reação dos (dispensáveis) usuários a ela. Neste aspecto, Power lembra demais o fracassado Quarteto Fantástico (2015). O conceito de “dádiva” que machuca e empodera fica limitado aos impactantes efeitos visuais. A dependência é uma mera desculpa para construir a ação, que, por sinal, está longe de ser grande coisa. Com exceção de dois momentos isolados, a sequência da luta contra o artrópode é bem legal, sobra adrenalina e neon, falta assinatura e ideias originais. Ao ponto de, numa cena chave da trama, Henry Joost e Ariel Schulman simplesmente esconderem do público as consequências de um combate (aparentemente) visceral. Para uma obra com coreografias de luta tão simples, Power entrega um 'mise en scene' até bem confuso visualmente. 


Uma combinação de equívocos que prejudica o poder de uma interessante mitologia e um competente drama familiar. Apesar do roteiro repleto de furos e conveniências narrativas, Power fisga quando foca na figura de Robin e na relação dela com o obstinado policial Frank e o misterioso Art. Como se não bastasse o carisma da dupla Jamie Foxx e Joseph Gordon-Levitt, os cineastas envolvem ao criar protagonistas com motivações valorosas e conflitos identificáveis. É através deles que, em momentos pontuais, o argumento consegue tirar algum proveito do cenário social. Nada muito profundo, mas sólido o bastante para nos manter conectados com a trama ao longo dos dinâmicos 110 minutos de duração. No fim, porém, Power, tal qual inúmeros blockbusters, exalta o poder visual em detrimento do narrativo. Sobra estilo, falta conteúdo. Uma produção viciada pelos estímulos do cinema pipoca.

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