segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Crítica | Arkansas

Um negócio familiar

“Um criminoso entediado é um bom criminoso”, diz um traficante aos seus dois novos pupilos. Poucos filmes se definiram tão bem numa só frase. Arkansas é o anti O Poderoso Chefão (1972). Se o clássico de Francis Ford Coppola usava a família com “desculpa” para validar a violência, o espirituoso longa dirigido e estrelado por Clark Duke usa o crime organizado como uma surpreendente ponte para a construção de um revigorante drama familiar. Conhecido pelo grande público como o gordinho sarcástico das divertidas comédias Sex Drive (2007) e A Ressaca (2010), o jovem ator mostra uma inesperada nova faceta ao se apropriar das convenções de um gênero tão tradicional com um misto de reverência e subversão. 


O que começa de forma até banal, com dois jovens dispostos a se envolver num mundo muito mais perigoso do que eles projetavam, ganha desdobramentos fascinantes à medida que Duke impõe a sua autoral assinatura. Dividido em atos no melhor estilo Quentin Tarantino, o roteiro fisga ao nunca se apegar demais ao formulaico. Muito pelo contrário. Arkansas abraça a desglamourização do segmento. A máfia, aqui, ganha um ar quase fordista. Todos só querem passar despercebidos dentro de uma “linha de produção” funcional. Enquanto o introspectivo Kyle (Liam Hemsworth, na melhor atuação da sua carreira) até preenche um arquétipo reconhecível dentro da geografia do gênero, o descolado Swin (vivido com uma inofensividade comovente por Duke) surge para quebrar as nossas expectativas sobre o que está por vir. O fascínio em torno da trama nasce da disfuncionalidade, da excentricidade exercida pela dupla e da cativante dinâmica entre eles. 


Os diálogos são inteligentes. O humor "conversa" com a violência sem nunca reduzir o plot à comédia de erros. O que positivamente contamina a trama como um todo. Energiza um argumento que, em mãos menos inspiradas, poderia soar apenas como mais um num cenário sempre muito concorrido. Os mais puristas poderão até reclamar do ritmo. É inegável, porém, que Clark Duke nunca desrespeita a essência do gênero. A tensão nasce sorrateiramente. A violência surge de forma repentina. A ironia sublinha a fragilidade dos personagens. Sempre que preciso, o diretor esbanja pulso ao construir cenas de ação agressivas e realísticas. Todas regidas por uma sagaz trilha sonora capaz de emular os riffs do maestro Ennio Morricone com originalidade. 


A atmosfera de perigo, porém, se sustenta naquilo que é o foco da trama: o familiar vínculo de amizade entre os personagens. Sejam os "mocinhos” ou os "vilões". Os ótimos Vince Vaughn, John Malkovic e Michael Kenneth Williams, por sinal, agregam muito a abordagem singular da obra, justamente por criarem figuras ameaçadoras e ao mesmo tempo humanas. Já pelo lado dos 'good guys', a promissora Eden Brolin (filha do popular Josh Brolin) rouba a cena ao ajudar a expor o lado mais fraternal da dupla de traficantes. Com um olhar atento para os meandros em torno daqueles que escolhem o crime organizado como profissão, Arkansas nos faz se importar pelos protagonistas. É até doce ao construir a jornada deles. O que faz deste colorido filme de máfia uma das produções mais intrigantes e surpreendentes de 2020.

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