sábado, 8 de agosto de 2020

Crítica | A Luz no Fim do Mundo

Uma aventura de amor

Criar um filho no mundo em que vivemos já parece ser algo bastante desafiador. Imagine criar uma menina num futuro pós-apocalíptico em que um vírus dizimou praticamente todas as mulheres? Com um olhar impiedoso sobre a perversidade masculina, A Luz no Fim do Mundo causa um impacto natural ao traçar, a partir deste pessimista subgênero, um paralelo com o machismo enraizado nos centros urbanos. Mais do que expor a vulnerabilidade feminina\infantil, o longa escrito, dirigido e estrelado por Casey Affleck é sagaz ao propor um sólido estudo sobre a paternidade e o complexo processo de criação\preparação neste ambiente corrosivo. Embora o ritmo por vezes lento e a verborragia do roteiro prejudiquem a escalada de tensão, o realizador compensa ao tornar tudo o mais reconhecível possível. Affleck não se deixa seduzir pelo cenário distópico. Ao manter os dois pés no chão, ele, no final das contas, usa o fim da civilização como um agente catalisador, como uma extrapolação da realidade que (infelizmente) conhecemos.

Com uma abordagem muito própria do subgênero, Casey Affleck acerta em cheio ao colocar o mal numa esfera identificável. A perversidade masculina, aqui, é mais implícita do que explícita. Pai e filha não fogem de canibais, de tribos assassinas, de ladrões impiedosos, de pessoas contaminadas. O medo deles é real. A violência é real. Ao não dar muitas explicações sobre aquele mundo sem luz e esperança, o diretor permite que o público preencha as lacunas. Ele não precisa explicar qual seria as consequências se Rag (Anna Pniowsky) caísse nas mãos de estranhos. O que só aumenta o choque. O perigo nasce da sugestão. Brota das feições sempre acuadas do pai. Da câmera subjetiva que nem sempre entrega o que promete. É indiscutível que Affleck, enquanto diretor, perde algumas oportunidades dentro do segmento. O longa pode até frustrar os mais puristas. Por mais que as intenções do diretor sejam claras, falta ao longo pulso narrativo. À medida que a trama avança, a insinuação do perigo perde força. O que pode não ser digerido com tanta facilidade pelos mais dispersivos. Menos mal que, ao contrário de muitos títulos do subgênero, A Luz no Fim do Mundo não depende do suspense.

Isso porque, como escrevi no parágrafo inicial, Casey Affleck usa o elemento pós-apocalíptico apenas como um elemento catalisador. O foco da primeira à última cena está na disfuncional relação entre pai e filha. Em sua camada mais íntima, estamos diante de uma jornada de amadurecimento. A dele como pai de uma menina. A dela como alguém capaz de sobreviver neste mundo hostil. Por mais que, enquanto roteirista, Affleck se alongue em alguns diálogos, é legal notar a sensibilidade do realizador em tornar a troca de experiências entre os dois o mais reconhecível possível. No momento em que o protagonista se “desarma”, o que vemos é um pai zeloso às avessas com o processo de criação de uma menina. Rag já tem onze anos, mas ele insiste em infantilizar as coisas. Aos olhos dele ela é a sua menininha. E, num ambiente saudável, era isso o que ela seria. Naquele mundo, porém, ela já criou alguma casca. Ela já descobriu mais do que ele esperava. Ela já tinha bastante a oferecer também.

Com uma sutil abordagem intimista, Affleck é habilidoso ao traduzir o desconforto do pai em falar sobre sexo, sobre biologia feminina, sobre a vulnerável posição dela num mundo machista. Nestas passagens imersivas, o roteiro forma mais do que prepara. O realizador torna tudo mais complexo ao nunca reduzir as coisas ao lugar comum do embrutecimento. A esperança do pai nasce do elemento lúdico. Ele sabe que um dia ela será forte, mas insiste (como qualquer figura paterna) em postergar este rito de passagem. Um processo de proteção genuíno, mas por vezes questionado pelo próprio roteiro. Até porque Rag, por sua vez, quer possuir a sua voz, quer desafiar a superproteção, quer, tal qual qualquer pré-adolescente, andar com as suas próprias pernas. A sequência em que ela reinterpreta o ingênuo conto de abertura é simbólica, principalmente por traduzir com brilhantismo a mentalidade da menina. Ela gostaria de poder salvar o dia. Ela quer ter o direito de poder contar a sua própria história. Ela, como qualquer outra menina\mulher, quer se sentir representada. Resta saber se ela estará preparada para lidar com as consequências destas vontades quando necessário. O que, seja numa sociedade machista distópica, seja numa sociedade machista urbana, é sempre desafiador. Uma pergunta respondida com intensidade no seco e angustiante clímax. Impulsionado pela intensidade da dupla Casey Affleck e Anna Pniowsky, A Luz no Fim do Mundo contorna a aparente previsibilidade do ‘plot’ ao nunca reduzir tudo a questão da sobrevivência. De volta a direção após o infame Eu Ainda Estou Aqui (2010), o eclético realizador flerta com o teor alegórico ao enxergar nos perigos do cenário pós-apocalíptico uma ponte para a rotina de muitos pais diante da difícil missão de preparar uma filha para um mundo desigual, violento e frequentemente opressor. O que, além de fazer todo o sentido, reoxigena uma premissa batida com originalidade e um olhar atento para situações inesperadamente rotineiras num processo de criação.

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