domingo, 19 de julho de 2020

Lista | Dez dos Mais Subestimados Filmes da Década


O que define um filme subestimado? Não tenho resposta para esta subjetiva pergunta. Acho que filmes subestimados são muitas vezes incompreendidos. São aqueles que não encontram o seu público. São obras desvalorizadas. Dando sequência às nossas listas com os melhores filmes da década, desta vez selecionamos dez dos filmes mais subestimados lançados entre 2010 e 2019. Eu procurei levar em consideração principalmente o desdém popular. Como sempre costumo dizer, para um cineasta\produtor\ator, pior do que ter uma obra detonada pelo público e\ou pela crítica, é lançar um filme que pouca gente assistiu. Neste artigo, portanto, resolvi listar dez dos mais subestimados filmes da década. 

10º Ingrid Vai Para o Oeste (2017)


Numa época em que o número de seguidores praticamente define o nível de popularidade de um indivíduo, em que o número de cliques é frequentemente usado para medir a qualidade de um conteúdo, Ingrid vai para o Oeste surge como uma crônica satírica sobre a superexposta vida de um “influenciador digital”. Embora opte por tratar o tema dentro de um contexto “doentio”, sob a perspectiva de uma jovem frustrada e obsessiva disposta a tudo para experimentar o “estilo de vida” Instagram, o inteligente longa dirigido por Matt Spicer é perspicaz ao dar voz aos “influenciados”, ao mostrar as sequelas da superexposição na rotina daqueles que são capazes de transformar um anônimo numa “celebridade”. Numa análise interessante, o realizador é objetivo ao encurtar os polos, ao questionar o que leva uma pessoa ordinária a conseguir tanto seguidores, refletindo sobre um possível vazio geracional numa comédia positivamente fútil e naturalmente desconfortável. Uma sensação de incômodo potencializada pela irônica performance de Aubrey Plaza, adoravelmente dissimulada na pele de uma mulher comum em busca - por que não? - do seu lugar ao sol. 

9º Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2017)

Como sobreviver a brutalidade que cerca o nosso dia a dia? Essa é a pergunta que fica martelando nas nossas cabeças ao longo dos impiedosos noventa minutos do imprevisível Você Nunca Esteve Realmente Aqui. Após causar um choque natural ao refletir sobre a psicopatia juvenil no desconcertante drama Precisamos Falar Sobre Kevin (2011), a talentosa cineasta Lynne Ramsey volta a provocar o público com um thriller de ação visceral, agressivo e soberbamente contextualizado. O Taxi Drive (1976) da nova geração, o longa estrelado por um introspectivo Joaquin Phoenix subverte as nossas expectativas ao colocar o dedo na ferida de uma forma bem mais autoral. Na verdade, a violência aqui é muito mais social. Os personagens não estão “quebrados” porque perderam alguém. Os traumas são muito mais pesados e enraizados. Temos guerra, tráfico humano, exploração sexual infantil, violência doméstica, corrupção... Sem a intenção de dar respostas vazias sobre as chagas sociais citadas acima, Ramsey “brinca” de fazer cinema ao, quase sempre em ‘insights’ visuais angustiantes, estabelecer a dor dos seus personagens. Impressiona, aliás, a capacidade da diretora de, em meio a crueza das sequências mais agressivas, nos brindar com alguns planos íntimos de rara sensibilidade, conseguindo investigar o estado de espírito dos seus combalidos personagens com extrema profundidade e inegável perícia visual. No fim, porém, a pergunta persiste. Como sobreviver a brutalidade presente no nosso dia a dia...

8º Maus Momentos no Hotel Royale (2018)

Logo que saiu o magnífico primeiro trailer de Maus Momentos no Hotel Royale, a minha impressão foi instantânea: estava diante de um dos grandes ‘hits’ cinematográficos de 2018. Tudo nele parecia excelente. O imponente elenco. A instigante premissa. A singular aura setentista. Somado a isso, o longa trazia consigo a marca Drew Goddard, um realizador que, embora com poucos trabalhos, causou frisson junto ao público com títulos como Cloverfield: O Monstro, o cultuado O Segredo da Cabana e o memorável Perdido em Marte. Em outras palavras, um projeto que nasceu cercado de expectativas. Aconteceu com Maus Momentos no Hotel Royale, porém, algo capaz de causar arrepios na espinha de qualquer produtor. O filme não foi destruído pela crítica, nem tão pouco detonado pelo público. Pior! Ele simplesmente não foi assistido. Numa conjunção de fatores que geralmente acometem os ‘cult movies’, a película passou pelas salas de cinemas estadunidenses com uma velocidade incomum para o tamanho dos nomes envolvidos na obra. Pior para os fãs do gênero. Lançado diretamente via streaming no Brasil, Maus Momentos no Hotel Royale é uma daquelas produções criminosamente subestimadas. Mais uma vez brincando com as expectativas do público, Goddard provoca ao investir numa obra tensa, charmosa e indiscutivelmente intrigante. Um jogo de gato e rato insinuante que se revela também inesperadamente denso e contextualizado. O amadurecimento de um diretor que, no seu segundo grande projeto, decidiu não reduzir tudo ao fator surpresa. 

7º Meu Amigo, O Dragão (2016)

Eclipsado por outros grandes lançamentos do gênero, entre eles o aclamado Mogli: O Menino Lobo, o desprezado O Bom Gigante Amigo e o recente O Lar das Crianças Peculiares, Meu Amigo, O Dragão é uma daquelas "sorrateiras" pequenas grandes aventuras que remetem diretamente à nossa infância. Numa bem-vinda atualização do musical homônimo lançado em 1977, o remake dirigido e roteirizado por David Lowery (Amor Fora da Lei) enche a tela de emoção e virtuosismo estético ao acompanhar a singela parceria entre um jovem órfão e um solitário dragão. Conduzido com elegância e extrema sutileza, o longa absorve a quintessência dos estúdios Disney ao investir numa premissa lúdica e mágica, uma obra honesta guiada por temas como a amizade, a bravura e a importância do núcleo familiar. E isso, pasmem vocês, sem soar piegas ou datado. No melhor estilo E.T: O Extraterrestre (1982) e O Gigante de Ferro (1999), Lowery é preciso ao se concentrar no ponto de vista infantil, encontrando nos promissores Oakes Fegley e Oona Laurence o misto de carisma e empolgação necessários para dar liga a esta fascinante película. Evitando subestimar a inteligência do público, principalmente a dos mais jovens, a nova versão de Meu Amigo, O Dragão é suficientemente madura ao explorar as emoções em torno da trama. Apesar da proposta nostalgicamente aventureira, a refilmagem não se precipita ao arquitetar os conflitos dos protagonistas, mostrando cadência ao passear por temas como a amizade, a solidão e a carência familiar. Mesmo diante de alguns inegáveis deslizes, entre eles a perceptível queda de rimo no segundo ato e a pressa no arremate de algumas situações dentro do clímax, Meu Amigo, O Dragão é uma daquelas nostálgicas refilmagens que não merecem cair no esquecimento. 

6º Dope (2015)

Questionador, indomável e aventureiro, Dope foge do lugar comum ao esmiuçar os estereótipos raciais enraizados na sociedade norte-americana. Mais do que promover uma inusitada mistura de gêneros, o afiado longa dirigido por Rick Famuyiwa (Nossa União, Muita Confusão) arranca inúmeras gargalhadas ao flertar tanto com a leveza oitentista dos clássicos juvenis de John Hughes, quanto com o engajamento social de realizadores mais viscerais como John Singleton e Spike Lee. Embalado por uma incrível trilha sonora, recheada de hits do Hip-Hop, o perspicaz argumento renega através das desventuras de três jovens de classe média\baixa os clichês sociais impostos pela desigualdade e pela falta de perspectiva. Um relato "moleque", mas absolutamente realístico, que não só traduz com extremo bom humor alguns dos mais universais anseios da juventude, como também deixa uma poderosa mensagem de luta contra o sistema. Brincando com a expectativa do público do primeiro ao último minuto, Dope se revela uma aventura estudantil que vai bem além do recorrente baile de formatura. Aclamado no respeitado Festival de Sundance, o longa produzido e narrado (elegantemente) pelo ator Forest Whitaker pincela um relato otimista e altamente descontraído ao narrar a jornada de um jovem sonhador que decidiu encarar as barreiras raciais e lutar pelo seu próprio futuro. Tirando o máximo proveito do fantástico repertório musical e do colorido cenário noventista concebido pela direção de arte, o convidativo longa nos surpreende ao - tal qual o seu protagonista - não se prender a rótulos, estereótipos e as imposições de um gênero.

5º Desobediência (2017)

Logo no seu brilhante monólogo de abertura, uma reflexão poderosa sobre o que nos define enquanto seres humanos, Desobediência abraça a complexidade do tema proposto ao investigar as sequelas causadas por uma relação homossexual numa comunidade definida pela mentalidade retrógrada. Fazendo um primoroso uso do elemento religioso e das rígidas tradições da cultura judaica, o sensível diretor Sebastian Lelio (A Mulher Fantástica) reúne duas das melhores atrizes em atividade na construção de um romance ambientado num cenário rígido, lúgubre e repressor. Com maturidade e consciente da complexidade temática, o cineasta não titubeia em invadir a intimidade do trio, em ir além do silêncio do luto, extraindo a tensão da iminência da crise. As consequências podem ser sérias e o diretor sabe bem disso. Na transição para o último ato, inclusive, o cineasta chileno eleva o nível de suspense ao explorar o temor do público, ao trabalhar com medos reconhecíveis. O resultado é um soberbo último ato, um desfecho comovente principalmente pela delicadeza com que o roteiro resolve os conflitos sem descaracterizar os seus personagens. Impulsionado pelas soberbas performances de Rachel McAdams e Rachel Weisz, que, mesmo diante de tipos tão diferentes, interiorizam os conflitos pessoais de Esti e Ronit com similar intensidade, Desobediência parte de um cenário específico para discutir o reconhecível drama de duas mulheres pressionadas a não se assumirem como são. Um filme silencioso, íntimo e denso que, embora tenha os seus momentos mais lentos, compensa ao confiar na humanidade dos seus personagens. 

4º Os Suspeitos (2013)

Duas horas e meia de pura tensão. Essa definição resume bem Os Suspeitos, o thriller que marcou a então estreia em Hollywood do elogiado diretor canadense Dennis Villeneuve. Apesar da péssima tradução no título brasileiro, que remete diretamente ao filme de 1995 assinado por um hoje infame Bryan Singer, o suspense cumpre tudo aquilo que promete para se tornar um dos melhores da década. Com uma trama extremamente bem construída, e um elenco liderado pela marcante atuação de Hugh Jackman, Os Suspeitos é um daqueles filmes que não terminam com os créditos finais. Na verdade, ele segue martelando a cabeça do espectador, principalmente pela forma intensa com que debate quais são os limites do ser-humano a partir de uma grande tragédia familiar. Isso porque o suspense vai além da tensão da descoberta do paradeiro de duas meninas. Villeneuve enxerga nesta situação extrema a oportunidade de tecer alguns profundos comentários sociais. Uma abordagem que, infelizmente, faz bem mais sentido hoje. Como se não bastasse o crescente senso de desespero alimentado pelo roteiro, o cineasta é categórico ao, a partir da deterioração dos protagonistas, discutir o perigo da justiça a qualquer custo. Assim como o título original sugere, Prisioners (Prisioneiros) nos aprisiona numa trama sufocante regida por impulsos perigosos e pela potente crítica embutida no mistério.

3º Phoenix (2015)

Tal qual a ave mitológica que dá título a este belíssimo exemplar do cinema alemão, Phoenix impressiona ao narrar de maneira elegante a jornada de uma mulher que renasce das cinzas após sobreviver a brutalidade do holocausto. Impulsionado pela soberba atuação de Nina Hoss (O Homem mais Procurado), brilhante ao explorar as nuances de uma cantora desfigurada pelos nazistas, este intenso drama sobre o pós-Segunda Guerra encanta pela inesperada sutileza com que acompanha a corajosa busca desta emblemática personagem por sua identidade perdida no conflito. Dirigido com rara inspiração por Christian Petzold (Barbara), o longa se distancia por completo da previsibilidade ao se aprofundar nas consequências deste tenebroso período, construindo com assombrosa frieza uma dolorosa história de amor e descobertas. Fazendo um refinado uso do desolador cenário alemão no pós-guerra, potencializado pela sombria fotografia de Hans Fromm (Barbara) e pelo realista trabalho da direção de arte ao reproduzir tamanha destruição, Phoenix comprova que as feridas emocionais são as mais difíceis de serem cicatrizadas. Sem qualquer tipo de concessão aos clichês do gênero, Petzold se mantém fiel às suas intenções da primeira à última cena, evidenciando através da reconstrução de Nelly os horrores impostos por este nefasto período. Ainda que o ritmo propositalmente suave (quase lento) possa incomodar o mais desavisado, o fascinante roteiro guarda as suas revelações até a catártica sequência final, daquelas que merecem aplausos de pé e pontuam de maneira assustadoramente graciosa a jornada desta arrebatadora personagem.

2º Ad Astra (2019)

Poucos títulos recentes teceram comentários tão profundos sobre a paternidade quanto o enervante Sci-Fi Ad Astra. Por trás de uma expressiva jornada rumo ao desconhecido existe um drama existencial sobre o impacto da ausência, o peso da solidão e as sequelas da obsessão na vida de dois homens ligados pelo elo consanguíneo. Sob a intensa e virtuosa batuta de James Gray (Era Uma Vez em Nova Iorque, Z: A Cidade Perdida), o longa estrelado por um soberbo Brad Pitt camufla no viés científico\futurista uma trama genuinamente familiar sobre laços repentinamente rompidos e o vácuo causado na rotina daqueles que são deixados para trás. No fim, embora escorregue no terreno da condescendência nos seus minutos derradeiros, Ad Astra é uma das grandes surpresas cinematográficas de 2019. James Gray consegue saciar o apetite dos fãs de um Sci-Fi provocante numa obra espetacular quando pode e dramática quando precisa.

1º O Abutre (2015)

Um relato cínico sobre o 'modus operandi' da indústria do sensacionalismo, O Abutre é o filme mais subestimado da década porque não conseguiu alcançar a aclamação em nenhuma forma. E isso era o mínimo que esta pérola merecia.  Com uma ironia fina, Dan Gilroy debocha do "sonho americano" ao narrar a obsessiva jornada de um sociopata em busca da ascensão profissional. Jake Gyllenhaal surge monstruoso na pele deste homem sedento por algo até então inalcançável. A violência urbana, aqui, surge como um instrumento de ascensão. Numa época em que discutimos os limites da imprensa e a indústria das Fake News, Gilroy subverte o conceito das notícias falsas ao encontrar na insanidade do protagonista um paralelo com a voracidade do jornalismo sensacionalista. Por mais que o longa funcione brilhantemente enquanto suspense, a tensão só cresce à medida que a desordem emocional do protagonista fica evidente, o cineasta potencializa a trama ao questionar a interferência midiática, o exagero, a insensibilidade, a banalização da violência, culminando num retrato que alguns anos depois do lançamento do longa soa ainda mais verossímil. E, porque não, alarmante. Um sentimento de perigo impresso no olhar vidrado de Jake Gyllenhaal, facilmente uma das performances masculinas da década. Como ele sequer foi indicado ao Oscar? É por essas e por muitas outras que O Abutre fecha a lista com esta merecida primeira posição.

Menções Honrosas

Nenhum comentário: