terça-feira, 14 de julho de 2020

Crítica | Waves

Pressão Precoce

Uma crônica urbana impactante, Waves esbanja potência dramática ao refletir sobre os desafios de se criar uma família na estrutura disfuncional em que habitamos. O talentoso diretor Trey Edward Shults toca em temas tão identificáveis e com tanta intimidade que fica impossível não se reconhecer nos personagens. Não experimentar a dor deles. Não notar os perigos escondidos no comportamento deles. Com um olhar muito cuidadoso, o cineasta propõe um estudo sobre a formação individual. Sobre as imposições que aprisionam, que angustiam, que machucam. E o estrago causado por elas. 

O elemento racial apenas catalisa os conflitos dos protagonistas. Shults é inteligente ao não focar no preconceito e nas sequelas do racismo sistemático. Isso é uma rotina. Embora siga os passos de uma família de classe média-alta, o longa é categórico ao tratá-los como exceção de uma regra que a qualquer momento pode se aplicar a eles. As sirenes policias surgem como uma ameaça constante. O esporte segue como o sinônimo de um futuro mais próspero. A pressão social é latente. Tanto que As Ondas ganha contornos drásticos quando uma lesão põe em cheque a bolsa de estudos de Tyler (Kelvin Harrison Jr.), um lutador de luta livre gentil e vaidoso que levava uma vida perfeita. De uma hora para outro a rotina de privilégios cai por terra. Shults é sagaz ao tratar a ameaça como algo implícito. Um medo que vem de dentro. 

O perigo nasce das imposições do exigente pai (Sterling K. Brown), da masculinidade tóxica, da desordem emocional gerada pela pressão, da incerteza causada por uma notícia inesperada e da precocidade. Ninguém com 18 anos está preparado para lidar com tantos “estímulos” contrastantes. A partir da instável perspectiva do protagonista, Trey Edward Shults expande o drama individual ao tentar entender a raiz destes dilemas. A natureza dos personagens não está em cheque. O foco está naquilo que os molda. Na desigualdade subentendida. Na falta de diálogo. Na ausência familiar. Na imaturidade. Nas corrosivas maneiras encontradas para fugir desta realidade. O roteiro é sutil ao redimensionar os sentimentos dos personagens, ao expor os estragos (diretos e\ou indiretos) causados pela violência doméstica, pelas drogas, pelo racismo. 

Por mais que eu tenha ressalvas quanto a ruptura narrativa pensada por Shults, o realizador é perspicaz em trazer um sentimento de causa e consequência. À medida que a introspectiva Emily (Taylor Russel) se “liberta” do efeito centralizador gerado pelo irmão, o longa pode até perder vigor, mas ganha uma sensível energia reflexiva. As ondas geradas por Tyler impactam todos ao seu redor. Quando o preço da pressão autoimposta é cobrado, Waves humaniza ainda mais os seus personagens. Os liberta das “prisões” impostas pelos rótulos do marido provedor, da esposa sem voz, da filha subserviente. O denso personagem de Lucas Hedges ajuda a expor a realidade\desigualdade sob uma outra perspectiva. Menos racial, mais social. Ninguém está livre dela. Uma mansão construída em terreno arenoso é tão frágil quanto um casebre de madeira numa comunidade carente. O alicerce é tudo. Guiado pelas poderosas performances (Kelvin Harrison Jr. é o futuro), pela condução estilosa e ao mesmo tempo naturalista de Shults e pelo inclemente texto, Waves renega os filtros do Instagram ao expor a realidade de uma nova geração torturada por exigências cada vez mais dilacerantes e o círculo vicioso social escondido por trás delas. 

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