terça-feira, 23 de junho de 2020

Crítica | Wasp Network

Lição de casa mal feita

Existem claramente dois filmes em Wasp Network. O primeiro é uma bomba inacreditável. Um recorte distorcido sobre a realidade de Cuba no regime Fidel Castro que sacrifica o complexo contexto histórico (e outras cositas mais) em prol de uma tola tentativa de criar um twist narrativo. O que nos leva ao segundo filme. No momento em que decide se aproximar da realidade dos fatos, o respeitado diretor Olivier Assayas eleva o nível do material ao mostrar a miserável posição social do povo cubano diante de um cenário político recheado de nuances. O estrago fílmico, porém, já estava feito. Estamos diante de uma obra rasa e ao mesmo tempo inchada que subaproveita as suas claras virtudes ao trocar o drama humano pela frieza dos thrillers de espionagens. Uma solução bem pouco latina. 


É difícil explicar o que Olivier Assayas quis aqui. Responsável por títulos densos com o drama Acima das Nuvens (2014) e Personal Shopper (2016), o realizador aniquila o estudo de personagem na ânsia de fisgar a atenção do público. A impressão que fica é que o cineasta francês não acredita no potencial dramático da sua própria história e por isso precisa recorrer a subterfúgios narrativos para tentar torná-la mais impactante. O que de maneira alguma funciona. Na tentativa de subverter o senso comum quanto a realidade de Cuba após o fim da União Soviética, Assayas, num primeiro momento, usa e abusa do didatismo ao propor uma visão unidimensional dos fatos. O roteiro assinado pelo próprio diretor flerta com o amadorismo. Os personagens são precariamente introduzidos. O texto é de uma pobreza inacreditável. A montagem é caótica. A todo momento um personagem surge verbalizando uma mazela estrutural de Cuba. Numa destas cenas “risíveis”, a matriarca resiliente vivida por Penélope Cruz reclama da falta de comida no país (adivinha?) cozinhando. Nada parece casar com a realidade impressa na tela. Tudo é muito colorido. Muito saudável. Não é novidade para ninguém que o povo cubano sofreu com o abandono soviético. Alguns dos fatos relatados pelo expositivo longa são sim verdadeiros. Assayas, porém, nega ao público a oportunidade de conhecer o contexto. Em nenhum momento o realizador, por exemplo, investiga o estrago causado pelo embargo comercial do bloco capitalista. Ou então o idealismo daqueles que topam defender a sua pátria mesmo diante das adversidades. Ou a dor daqueles que perderam a dignidade. Ao tratar a realidade sob uma perspectiva unilateral e um tanto americanizada, o longa não só enfraquece um instigante ‘plot’, como flerta com a alienação ideológica. A América surge como a Terra dos Sonhos para os desertores.


Uma visão de mundo constrangedora que, felizmente, é quebrada com o começo do “segundo filme”. Ao que tudo indica, Olivier Assayas tentou que a abordagem parcial dos fatos soasse como uma piada. Um deboche. O problema é que o diretor não consegue explorar estas nuances “irônicas” em momento algum. Nem tão pouco proteger as reais intenções dos seus protagonistas, os desertores Rene (Edgar Ramirez), Gerardo (Gael Garcia Bernal) e Juan (Wagner Moura). Não existe tensão em Wasp Network. Um baita problema atenuado pela maneira com que, antes tarde do que nunca, o argumento estuda a dinâmica entre cubanos, traidores e americanos com uma dose a mais de verossimilhança. O melhor do longa reside aqui. Com um olhar atento para o jogo de gato e rato entre polos totalmente opostos, Assayas é habilidoso nos permitir entender (finalmente!) a realidade dos fatos. O diretor nota a legitimidade de Cuba em proteger o seu território, mas não nega a repressão, as mazelas sociais e a vulnerabilidade do povo em meio a este imbróglio. O mesmo vale para a “oposição”. A revolução democrática, aos olhos de Assayas, era sustentada por figuras\organizações tão dúbias quanto a de Fidel Castro. O que sugeriria um futuro nada promissor em caso de queda do regime castrista. Sem perder muito tempo com explicações gratuitas, o argumento eleva o nível da obra ao investir na espionagem e na contra-espionagem. Nas entrelinhas, o diretor é cuidadoso ao notar também a interferência americana neste processo. Quando a realidade assume a sua face reconhecível, o longa é assertivo ao expor a verdade, ao tratar o complexo de “fiscal do mundo” dos EUA como algo igualmente nocivo.


O que não é o bastante para contornar os grosseiros problemas narrativos\estruturais de Wasp Network. Um filme que carece de bons personagens e de sentido em muitos momentos. Olivier Assayas falha ao nunca extrair a verdade dos protagonistas, ao não dar espaço para os seus dramas mais íntimos. O que é um problema numa película de quase 2 h e 10 min. O insosso René Gonzales (Edgar Ramirez) se revela um protagonista frustrante para um filme frustrante. Embora sustente a trama em fatos por si só intrigantes, o diretor falha em extrair algum sentimento que não seja a apatia dele. Fica até difícil comprar que estamos diante de um piloto desertor com intenções tão destemidas. Tudo bem que Ramirez é um ator limitado, mas o roteiro não ajuda. Todos os elementos mais interessantes em torno do protagonista são subaproveitados. A sua relação com a pátria, a sua visão política, o peso da “traição”. Por mais que o longa até tente explorar a infidelidade sob uma singular perspectiva familiar, Assayas nunca consegue tratar o drama do personagem com a devida propriedade. 


O que se reflete também na sua esposa, a resiliente Olga. Apesar do esforço de Penélope Cruz, ela é reduzida a todos os clichês possíveis envolvendo matriarcas latinas. Um desperdício de talento que, por sinal, respinga também no expressivo Gael Garcia Bernal. O seu personagem deveria ser importante, parece ser importante, mas não passa de um mero coadjuvante de luxo. Com tipos que somem e desaparecem ao bel prazer do roteiro, o único que parece realmente ter entendido o espírito da coisa é o brasileiro Wagner Moura. Mesmo com um tempo de tela limitado, é no seu Juan Roque que Assayas melhor abraça o cinismo que falta ao “primeiro filme”. Ele é confiante, é sedutor, é misterioso. A relação com a esposa troféu vivida por Ana de Armas (que desperdício de talento) é quente. Assim como inúmeras peças do roteiro, no entanto, a sua utilidade tem um prazo. E ele é curto demais.


Com inegáveis predicados visuais, a fotografia da dupla Yorick Le Saux e Denis Lenoir confere uma expressiva aura caribenha ao longa, Wasp Network é um filme sem raízes. Uma lição de casa mal feita. Um longa pobre sobre um tema rico. Mesmo nos seus momentos mais inspirados, Oliver Assayas parece contar uma história que não domina. Ou melhor, que não acredita. O que ajuda a explicar as escolhas duvidosas, a preguiça em contextualizar os fatos e o desdém para com o drama humano. Talvez o mais grave dos equívocos desta errática produção.

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