Unidas pelo gênero
Com uma abordagem sem filtros,
Karim Ainouz esbanja sensibilidade ao, a partir das otimistas (e descabidas) projeções
das duas irmãs sobre a realidade uma da outra, refletir sobre o impacto da
repressão, do machismo e da covardia na identidade delas. Sentenças como
"minha mãe é uma sombra do meu pai" chocam mais do que as
desconfortáveis cenas de sexo. Separadas por um impulso juvenil e muitas
mentiras, Guida e Euridice são obrigadas a enfrentar o pior da sociedade
conservadora. A independência feminina, aos olhos dos homens deste ambiente, é uma
chaga. Um obstáculo para a formação de um implacável círculo vicioso. O roteiro
assinado por Murilo Hauser, Inés Bortagaray e pelo próprio diretor causa um
incômodo natural ao mostrar como “erros” reconhecíveis são transformados em
pecados capitais. Esta desproporção passa a ditar o rumo da vida das duas. Enquanto
Guida sofre por uma gravidez imprevista, Euridice padece diante de um casamento
infeliz. Não importa o caminho escolhido. Uma seguiu o rumo pretensamente
errado. A outra o pretensamente certo. Ambas foram “punidas”. Ainouz é enfático
ao aproximar a jornada destas duas mulheres a partir das suas respectivas (e
problemáticas) relações com o masculino.
É a realidade impressa em tela. Quantos casamentos sobreviveram\sobrevivem num cenário tão repressivo assim? Quantas mulheres não tiveram de abrir mão de tudo que era mais caro por tão pouco? Quantas não cederam à ponto de normatizar a rotina de abusos? Só pelo fato de cogitarem a independência e de serem mulheres, Guida e Euridice se unem à medida que se distanciam. Quase como se fosse uma maldição. Na verdade, A Vida Invisível se alimenta deste desconcertante elo involuntário e só cresce na sua metade final. Karim Ainouz esbanja sensibilidade ao construir um estudo sobre aquilo que não foi e poderia ter sido. Mais do que rimarem narrativamente, as jornadas das irmãs se cruzam naturalmente. Se entrelaçam na ausência, na tristeza, no sofrimento, na impotência. Enquanto Euridice busca refúgio na sua música, Guida encontra na sororidade o seu grande porto seguro. Sem querer revelar muito, a relação de amizade entre ela e a carismática Filomena (Bárbara Santos) surge como um raio de luz numa realidade tão corrosiva. Basta olhar para essa mulher forte e fechada para entender o estrago que a vida lhe causou e ao mesmo tempo a maneira encontrada por ela para reagir. Uma personagem emblemática que só ajuda a potencializar a crônica proposta por Ainouz.
Mais do que uma obra virtuosa esteticamente, a fotografia vigorosamente poluída de Hèlene Louvart, em especial, só potencializa a sensação de desconforto, A Vida Invisível é um filme brilhantemente atuado. Tudo o que fica apenas implícito no errático primeiro ato as atrizes Julia Stockler e Carol Duarte traduzem no olhar. O misto de dor, tristeza, vazio e confusão. É impossível não se identificar com o drama delas. Não sofrer por elas. É possível ver a “casca” sendo criado ao longo do processo. A sequência em que Euridice explode em fúria diante de uma descoberta é monumental. O terror expresso apenas na silhueta desfocada da personagem é assombroso. Karim Ainouz transforma uma maquiagem borrada em algo quase monstruoso. Uma pintura que parece desmanchar em tela. No fim, quando decide preencher as suas principais lacunas, A Vida Invisível o faz com maestria. Não bastasse a magnética presença de Fernanda Montenegro, o cineasta pontua esta tragédia feminina com a certeza que nem todo sacrifício foi em vão. A dor fica, as cicatrizes ficam, as lembranças também.
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