sexta-feira, 29 de maio de 2020

Crítica | A Vastidão da Noite (The Vast of Night)

A Bruxa de Blair do Sci-Fi

Em 1938, numa peça de rádio, o então jovem Orson Welles causou um frisson coletivo nos EUA ao adaptar o clássico da literatura Sci-Fi A Guerra dos Mundos. Durante a transmissão, os relatos foram de caos e pânico. Muitos ouvintes compraram a ficção como realidade. Acreditaram que o planeta Terra estava realmente sendo invadido por alienígenas. No dia seguinte ao programa, o jornal Daily News noticiou “Guerra falsa no rádio espalha terror pelos Estados Unidos". Uma história, quando bem contada, não precisa ser gráfica para impactar. Basta saber explorar\estimular a curiosidade\medo do público. Dotado deste espírito, A Vastidão da Noite surpreende ao alimentar o sentimento de angústia no espectador sem apelar para a banalização das imagens. Distribuído pela Amazon Studios, o imaginativo longa de estreia do diretor Andrew Patterson faz um brilhante uso da atmosfera na construção de uma ficção científica raiz. O tipo de obra imersiva que convida o público a experimentar o crescente mistério, a criar imagens a partir dos diálogos, a se deixar levar pelas impactantes descobertas de dois jovens dos anos 1950 unidos por uma misteriosa transmissão.



Tem muito A Bruxa de Blair (1999) em A Vastidão da Noite. Lançado no final dos anos noventa, este clássico moderno do terror ‘found footage’ causou arrepios ao redor do mundo com uma abordagem sugestiva. A tensão nascia da atmosfera criada antes (graças a visionária campanha de marketing) e ao longo da exibição. O horror surgia daquilo que não era visto. Algo que se repete em The Vast of The Night (no original) dentro da lógica do universo do Sci-Fi. O diretor Andrew Patterson é perspicaz ao se apropriar do medo do desconhecido do espectador na construção do clima de mistério. O ‘found footage’, aqui, dá lugar a uma linguagem quase documental. No contextualizador (mas potencialmente dispersivo) primeiro ato, o realizador não se apressa a introduzir os seus carismáticos protagonistas. Por alguns longos minutos seguimos os passos do radialista Everett (vivido pelo persuasivo Jake Horowitz) e da assistente da central telefônica Fay (interpretada por uma intensa Sierra McCormick). Patterson se preocupa em criar a imersão num pacato cenário cinquentista. Embora os dois, numa espécie de prólogo, conversem sobre tecnologia e as perspectivas de futuro, o papo da dupla soa um tanto deslocado da natureza do plot. Só soa...


A paciência, no entanto, é justificada. Com um ‘mise en scene’ extremamente ambicioso, o cineasta compensa a verborragia com um expressivo uso dos planos longos e\ou sequenciais. Um exercício cinematográfico empolgante. O cenário, como nos melhores filmes do gênero, é parte integrante da ação. Em sua essência, A Vastidão da Noite surge como uma poderosa crítica contra a alienação popular. Enquanto um jogo de basquete atrai a atenção de praticamente todos os moradores desta pequena cidade dos EUA, uma série de enigmáticas manifestações começa a ganhar forma. A maioria não dá a mínima. Os poucos que dão não são ouvidos. O criativo argumento assinado por James Montague e Craig W. Sanger fisga ao focar neste segundo grupo. A partir de um ruído estranho, Everett e Fay ligam um sinal de alerta. Algo extraordinário está acontecendo. É interessante ver como Andrew Patterson catalisa a história de forma muito intuitiva. Os personagens agem e reagem seguindo os seus conhecimentos tão bem introduzidos no ato inicial. A tecnologia surge como um elo entre os dois. Ele, na rádio, e ela, na central telefônica, começam gradativamente a encaixar as peças deste quebra cabeça. 


À medida que os mistérios começam a ser investigados, A Vastidão da Noite cresce. E se sustentando, basicamente, no texto. Se em A Bruxa de Blair o horror nascia daquilo que não era visto, mas sentido, a paranoia aqui brota do poder imagético dos diálogos e da nossa reação a eles. Com uma metalinguística aura Twilight Zone, o diretor convida o público a participar da experiência. A criar imagens a partir dos relatos daqueles que também se importam. Além de oferecer possíveis (e intrigantes) respostas, as descobertas contextualizam. Nas entrelinhas, o argumento encontra na ficção-científica a oportunidade de falar sobre racismo, sobre misoginia, sobre um grupo de pessoas constantemente desacreditado. Mais do que um mero elemento narrativo nostálgico, o rádio, assim como em A Guerra dos Mundos de Orson Welles, ajuda a tornar tudo mais sensorial e imersivo. Um mérito que, por sinal, merece ser dividido com a condução intimista de Patterson. Nestas passagens mais reveladoras, o cineasta evita qualquer ruído ou dispersão narrativa. Ele devota praticamente tudo aos diálogos. Por vezes é isso que vemos. Tela preta e verbalização. Uma opção ousada numa época de filmes tão estimulantes visualmente. Prevejo, inclusive, uma grande rejeição por parte do público acostumado a este tipo de produção mais impositiva esteticamente. Com isso, porém, não quero dizer que o elemento visual é esquecido. Muito pelo contrário. Como se não bastasse a engenhosidade do intuitivo 'mise en scene', a fotografia soturna em azulados tons envelhecidos ajuda a potencializar o atmosférico clima de tensão.


Por mais que na transição para o último ato o argumento sacrifique o elemento humano ao “dispensar” precocemente uma impactante personagem, A Vastidão da Noite se revela uma obra autêntica e instigante. Herdeiro natural de títulos como Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), o longa provoca a imaginação do público ao questionar a alienação popular. Uma mensagem que, seja no universo do Sci-Fi ou não, segue urgente e alarmante. O perigo, talvez, pode estar na imensidão do espaço, mas também viver entre nós.

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