domingo, 31 de maio de 2020

Artigo | Os 90 anos de Clint Eastwood, o Estranho Sem Nome que o Mundo do Cinema Aprendeu a Amar

“Eu Amo o que eu faço”. Com base nesta afirmação, em entrevista recente ao USA Today, fica fácil entender a origem do vigor de Clint Eastwood. Por mais que o peso da idade seja um obstáculo, o legendário realizador completa 90 anos no auge da sua forma. Seus filmes são vistos. Seu público segue fiel. A sua assinatura crítica segue implacável. Basta olhar os seus últimos trabalhos, o subestimado A Mula (2017) e o ótimo Richard Jewell (2019), para percebermos que estamos diante de um cineasta destemido, com um olhar aguçado para a realidade. Alguém capaz de se apropriar de símbolos americanos tão caros para questionar. Tudo com muita personalidade. Ao contrário dos seus mais icônicos personagens, homens embrutecidos e moralmente ambíguos dispostos a resolver tudo na base da bala, Eastwood se revelou com o passar dos anos um diretor sensível e extremamente humano. Um autor encantado pela bravura do indivíduo comum, seja um caubói traumatizado, uma pugilista obstinada, um idoso racista ou uma mãe desesperada. Eastwood, talvez pela sua própria experiência de vida, se acostumou a valorizar as pequenas histórias. Antes de se tornar um ícone, ele conviveu rotineiramente com o não, com o descrédito e com a rejeição. Durante muito tempo ele foi literalmente um estranho sem nome dentro da sua indústria. 


Nascido em San Francisco, na Califórnia, no dia 31 de Maio de 1930, Clinton Eastwood Jr. seguiu uma trajetória particular rumo ao estrelato. Assim como muitos nomes da sua geração, antes de experimentar a arte ele foi seduzido pelo exército. O que quase lhe custou a vida. Durante a Guerra da Coreia, em 1951, o avião em que o jovem Eastwood estava caiu no mar por falta de combustível. Ao lado do piloto, ele sobreviveu a queda e, com a ajuda de um bote salva-vidas, remou por quase 3,5 Km até encontrar o resgate. Antes mesmo de sonhar em atuar, Eastwood já tinha uma história digna de cinema para contar. As suas primeiras experiências como ator, no entanto, foram pouco estimulantes. Encantados pela presença física do agora ex-militar, alguns produtores de Hollywood abriram as portas para ele. Graças ao operador de câmera Irving Glassberg, Eastwood conseguiu o seu primeiro grande teste com o diretor Arthur Lubin. Se a presença dele chamou a atenção, a sua performance não. Segundo consta, o realizador constatou a total inexperiência do então aspirante à ator. "Ele era um tanto amador. Ele não sabia para onde virar, para onde ir ou qualquer coisa", confidenciou Lubin.

Ainda assim, Clint Eastwood saiu de lá com um convite para fazer aulas de atuação e um contrato de US$ 100 dólares por semana com a Universal. Um dos seus maneirismos mais reconhecidos, o clássico ranger de dantes enquanto pronuncia suas falas, foi duramente criticado pelos seus "superiores" ao longo desta fase inicial. Menos mal que ninguém mexeu nesta que viria a ser uma das suas marcas registradas enquanto ator. Só em 1954 ele fez o seu primeiro teste oficial, mas não conseguiu a vaga. Só em 1955 ele conseguiu o seu primeiro papel, na inexpressiva continuação de A Revanche do Monstro (1955). E assim Eastwood construiu a sua carreira por longos anos. Com personagens pequenos, em (geralmente) Westerns de segunda e quase sempre sem grande crédito junto aos produtores. Neste período, Eastwood admitiu ter aprendido muito observando o trabalho de terceiros. “Quando eu era contratado da Universal, eu costumava ir a sets o tempo todo e assistir as pessoas dirigirem. Eu vagava até o ponto que eles deixaram. Geralmente, quanto maior o diretor, mais rigorosos eles eram em não ter pessoas por aí. Eu queria assistir os atores por um lado, mas também fiquei muito curioso sobre a participação do diretor”, revelou em entrevista ao DGA. Segunda a publicação, o ator citou Alfred Hitchcock como um dos cineastas que ele “bisbilhotava” pelo set.

Clint Eastwood se viu "encurralado" por um arquétipo. Um estereótipo que a popular série de TV Rawhide ajudou a construir. Mesmo com sérias ressalvas quanto ao papel, Eastwood topou estrelar o show. O próprio tratava o seu personagem como um tipo jovem (e bobo) demais para ele. Um caubói bondoso, valente e unidimensional. Àquela altura, porém, ele não podia negar qualquer cheque. Algo em torno de US$ 750 por episódio. Talvez para a surpresa de Eastwood, Rawhide logo se tornou um sucesso da TV americana. Em três semanas a série já ocupava o Top 20 em audiência. O êxito foi tanto que o show durou seis temporadas, só sendo finalizado em 1965. Apesar do desgaste gerado pela produção, Eastwood, por sinal, nunca se adaptou à pesada rotina de gravação, foi ao longo da série que ele teve as suas experiências enquanto diretor. Mas somente de trailers, já que os produtores nunca se convenceram da habilidade do ator atrás da câmera. Que engano! 

Surge o Estranho sem Nome

Desconfortável com o rumo de Rawhide, Clint Eastwood viu uma inesperada oportunidade surgir no seu radar. Por muito pouco, no entanto, o personagem que catapultou a sua carreira não foi parar nas mãos de outro ator. Eric Flemming, parceiro de Eastwood no set de Rawhide, foi o primeiro convidado para estrelar um tal filme chamado Por um Punhado de Dólares (1964). Ele, porém, não se entusiasmou com a ideia de filmar numa região remota da Espanha, com um diretor relativamente desconhecido e cifras baixas. Na época, com a crescente decadência do faroeste clássico, migrar para um país estrangeiro para filmar era considerado um desprestígio. Algo que Era uma Vez em Hollywood, aliás, abordou com clareza. O tipo de vaidade que Clint Eastwood havia cortado do seu currículo há algum tempo. Indicado pelo também ator Richard Harrison, que, em sua descrição, defendeu que o astro de Rawhide poderia interpretar um caubói convincente, Eastwood aceitou. Ele ansiava pela possibilidade de encarnar um tipo dúbio. "Em Rawhide eu já estava cansado de interpretar o caubói de chapéu branco. O herói que beijava senhoras, cachorros e era doce com todo mundo. Eu decidi que era tempo de ser o anti-herói", confidenciou o ator anos depois da realização do filme.

Ele não poderia estar mais certo. Um dos precursores do western revisionista, Por um Punhado de Dólares (1964) nos apresentou a um protagonista revigorado. Um caubói brutalizado pelo mundo em que habitava. Um homem silencioso, letal e com um ambíguo senso de justiça. Por US$ 15 mil e a promessa de receber uma Mercedes Benz no final das filmagens, Clint Eastwood cruzou com o personagem da sua vida. O retorno foi instantâneo. Sob a virtuosa batuta de Sérgio Leone, Por um Punhado de Dólares logo se tornou uma trilogia. O fantástico Por Uns Dólares a Mais (1965) e o imponente Três Homens em Conflito (1966) ajudaram a redimensionar o Western Spaghetti e por consequência a carreira de Eastwood. Fenômeno na Itália e na Europa, a trilogia foi vendida para a United Artists por US$ 900 mil. Faltava ao ator o reconhecimento no seu país. Bastou a trinca de filmes cruzar o oceano para que o status do ator mudasse da noite para o dia nos EUA. Lançada nos EUA em 1967, a Trilogia dos Dólares trouxe o retorno que ele esperava. O estranho sem nome de outrora dentro da indústria virava o Estranho sem Nome. Apesar da reação negativa da crítica, ainda reticente quanto ao seu talento, os filmes faturaram alto nas bilheterias. Só Três Homens em Conflito rendeu cerca de US$ 8 milhões por lá. No ano seguinte, Eastwood recebeu um gordo cheque de US$ 400 mil para estrelar A Marca da Forca (1968). Ele ainda não era o astro que gostaria de ser. O sucesso na pele de um vingativo delegado, por sua vez, o colocou na primeira prateleira. Perto de completar 40 anos, Clint Eastwood começou a experimentar o estrelato. E com a ajuda daquele que viria a ser o segundo grande colaborador da sua carreira.

Se Sergio Leone foi peça chave na introdução de Clint Eastwood no ‘mainstream’, o produtor\diretor Don Siegel foi o responsável pela sua consagração. Por mais que o primeiro filme da dupla tenha sido um grande tiro na água, o esquecível Meu Nome é Coogan (1968), a parceria rendeu inúmeros frutos. Após coestrelar o empolgante thriller de guerra Desafio das Águias (1968), Eastwood se consolidou como um astro do momento com títulos como Os Abutres tem Fome (1970), o ousado O Estranho que Nós Amamos (1971) e (claro!) o agressivo O Perseguidor Implacável (1971). Num ousado processo de transição, Eastwood trocou pouco a pouco a poeira do velho oeste pela brutalidade do asfalto. Mais do que uma mera atualização do arquétipo do Estranho sem Nome, o detetive Harry Callaham era uma resposta para a violência urbana do seu tempo. Mais uma vez Eastwood vivia um homem fruto do mundo corrosivo em que habitava. Herói para uns, fascista para outros... O fato é que, considerado por muitos um dos primeiros arquétipos do cinema de ação moderno na época do lançamento, o personagem se tornou o segundo grande ícone na carreira de Eastwood. Após tanta resistência, a mídia especializada finalmente deu o braço a torcer para o talento do ator. O Perseguidor Implacável foi um sucesso de público e crítica, virou uma sólida franquia e marcou uma nova transição na sua carreira. Clint Eastwood queria assumir os seus projetos. Esse era um sonho antigo. Uma expectativa que virou realidade com o prestígio financeiro.

Lá atrás, em 1967, Clint Eastwood fundou a sua própria produtora, a Malpaso Productions. Estava nos planos dele ter total autonomia sobre os seus trabalhos. Quatro anos depois, ele estreou na direção com o aclamado Perversa Paixão (1971). Já na sua primeira produção, Eastwood fez questão de se afastar do gênero que o consagrou. Mais do que isso. Exibiu uma assinatura intensa ao narrar as desventuras de um DJ perseguido por uma transloucada fã. Recebido com entusiasmo pela crítica, o filme garantiu a Jessica Walter uma indicação no Globo de Ouro na categoria Melhor Atriz Dramática. Nos anos seguintes, embora tenha emplacado alguns belos filmes sob a batuta de terceiros, entre eles O Último Golpe (1974) e Alcatraz: Fuga Impossível (1979), o melhor de Eastwood começou a aparecer nos filmes dirigidos pelo próprio. Em O Estranho Sem Nome (1973) ele voltou ao segmento que o consagrou num faroeste visceral e extremamente autêntico. Bebendo da fonte de Sérgio Leone, ele comandou também o igualmente elogiado Josey Wales: O Fora da Lei (1976). Um diretor em construção, Eastwood passou a experimentar mais na década de 1980. Relaxou na aventura Bronco Billy (1980), se aproximou da comédia dramática no subestimado Honkytok Man (1982), pilotou um capítulo da franquia Perseguidor Implacável em Impacto Fulminante (1983), retornou ao oeste em O Cavaleiro Solitário (1985), expandiu o escopo das duas obras em O Destemido Senhor da Guerra (1986), invadiu o drama biográfico com o excelente Bird (1988). Aqui, na verdade, a carreira de Clint Eastwood mudou de patamar enquanto cineasta. Vencedor do Globo de Ouro de Melhor Direção, o realizador se estabelecia de vez como um grande (e versátil) contador de histórias. Fez jus às suas principais influências, entre eles Vittorio de Sicca, Akira Kurosawa, John Ford e Federico Fellini.

O que viria a seguir seria a total transformação do artista. O ator reconhecido por papéis brutos se tornou pouco a pouco um diretor refinado. Na virada para os anos 1990, Clint Eastwood emplacou os seus maiores hits. Por trás do Republicano fechado e avesso aos holofotes existia um cineasta sensível, no auge da sua maturidade. Em Os Imperdoáveis (1992) ele tirou do papel o western revisionista definitivo ao contar a história de um caubói amargurado disposto a vingar uma prostituta deformada por um golpe covarde. É a despedida de alguém grato e ao mesmo tempo cansado da violência do gênero que o consagrou. O incrível é que o script do longa estava pronto desde 1976. Eastwood, no entanto, esperou ficar velho o bastante para poder também estrelar a produção. O tipo de devoção que se justifica em tela. Aclamado pelo público e pela crítica, o longa conquistou quatro estatuetas do Oscar, incluindo as de Melhor Filme e Direção. Aos 62 anos, ele chegava ao topo. E lá permanece até hoje. Os motivos são claros. Seus filmes seguiram falando por si só. Em O Mundo Perfeito (1993), Eastwood exigiu uma das grandes atuações da carreira de Kevin Costner ao narrar a comovente (e tensa) jornada de um instável preso foragido ao lado de um menino sequestrado. Que filme poderoso! Dois anos depois, ele arrancou lágrimas de plateias ao redor do mundo com o maduro romance As Pontes de Madison (1995). Só em 1997, Clint Eastwood dirigiu dois filmes, com destaque para o insinuante thriller Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal. Na virada para os anos 2000, o já septuagenário decidiu ir para o espaço com o divertidíssimo Os Caubóis do Espaço (2000).

Realmente, o céu era o limite para Clint Eastwood. Produzindo como nunca, ele se colocou num patamar que poucos realizadores alcançaram. E cada vez mais tocando em temas espinhosos. Com Sobre Meninos e Lobos (2003) conseguiu uma nova indicação ao Oscar num thriller criminal pesado e realístico. Vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, Tim Robbins não escondeu a gratidão em poder trabalhar com Eastwood. “Clint é um verdadeiro artista em todos os aspectos. Apesar dos anos em que esteve no topo e dos filmes lendários que ele fez, ele sempre nos fez sentir confortáveis ​​e valorizados no set, tratando-nos como iguais”, constatou o ator. No ano seguinte, Eastwood conquistou plateias ao redor do mundo ao discutir a eutanásia no potente drama esportivo Menina Dourada (2004). De volta ao tapete vermelho das grandes premiações, o longa estrelado por Hillary Swank garantiu a ele o Oscar de Melhor Filme e Melhor Diretor. Quantos seriam capazes de tocar em um tema tão polêmico hoje em dia? Quanto conseguiram ganhar tantos prêmios mesmo assim? O talento de Eastwood era absoluto. A qualidade dos seus filmes inquestionável. A sua complexa visão de mundo ditava o rumo das suas obras. Do alto dos seus 75 anos, ele resolveu filmar um episódio da Segunda Guerra mundial sob duas perspectivas nos ambiciosos A Conquista da Honra (2006) e Cartas de Iwo Jima (2007). Com um olhar muito atento para o fator humano em meio a um grandioso conflito, o cineasta fugiu do lugar comum ao investigar a identidade\destino de um grupo de soldados americanos e japoneses envolvidos nos bastidores de uma icônica foto. Uma sacada de gênio. Segundo o próprio, o projeto que o deixou mais orgulhoso em ter realizado.

É impossível não se alongar quando o assunto é Clint Eastwood. Em 2008, por exemplo, ele conseguiu de Angelina Jolie uma atuação memorável no angustiante A Troca e topou discutir o racismo enraizado nos EUA no marcante Gran Torino. Um dos meus filmes favoritos! No ano seguinte, resolveu falar sobre o fim do Apartheid a partir de uma conquista esportiva no tocante Invictus (2009). Em 2010, Eastwood tentou refletir sobre as perspectivas de vida após a morte no irregular Além da Vida. Em 2011, pasmem, topou humanizar a figura do implacável “caçador de comunistas” J. Edgar Hoover no elegante J. Edgar. Aos olhos de Eastwood todo mundo merece a chance de ter a sua história contada. É legal perceber, no entanto, que ao longo da última década ele resolveu focar mais nos homens e mulheres do nosso dia a dia. Nos protagonistas que vivem entre nós. Em Sniper Americano (2014), Eastwood debate o trauma da guerra do Iraque (e por consequência da cultura belicista) a partir da óptica de um dos militares mais letais em ação no país do Oriente Médio. Já em 2016, ele resolveu dar voz ao piloto Chelsey Sullenberg em Sully: O Herói do Rio Hudson. Seu feito rodou o mundo. Sua história não. Eastwood tratou de reparar isso. Em 2018, o diretor se arriscou em trabalhar com não atores no curioso 15:17: Trem para Paris. Tudo para poder dirigir os verdadeiros heróis, três amigos militares que, ao longo das suas férias pela Europa, evitaram um atentado terrorista num trem. Do alto dos seus 90 anos, Eastwood segue experimentando, segue na busca pelo novo. “As pessoas mais velhas, se mantiverem a mente aberta, podem ter o mesmo interesse em melhorar e aprender e novos conhecimentos à medida que avançam", sinalizou o cineasta em entrevista recente refletindo sobre a sua própria situação.

Sem planos para se aposentar, Clint Eastwood se acostumou a tratar a velhice como uma forma de libertação. “Quando era jovem, tinha raiva do mundo porque queria me tornar um músico de jazz e esse sonho foi interrompido quando tive de me preparar para a guerra da Coreia. Eu era muito estressado. À determinada altura, percebi que não precisava tornar tudo tão pesado. Me sinto muito mais livre hoje. (...) Se você desfruta do que está fazendo e continua aprendendo, permanece vivo. Os anos não significam nada. É preciso estar ativo, ocupado. Não estou pronto para sentar perto de um rio, com uma cerveja na mão, pensando no passado. Ainda há muito por conquistar”, disse à Revista Alfa em 2014. O ator que, segundo seus filhos, “não gosta de comemorar aniversários”, não parece intimidado com o peso da sua idade. “Talvez eu não queira mais uma grande quantidade de trabalhos, mas eu não vou diminuir. Eu amo o que eu faço”. Falou o diretor que, na última década, nos brindou com oito longas. Alguém dúvida disso?

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