quarta-feira, 8 de abril de 2020

Crítica | Quien Te Cantará



Maternidade e música

Uma pedrada disponível no catálogo Netflix, Quien Te Cantará usa a amnésia para discutir a verdade de duas mulheres reprimidas pelo fardo da arte e da maternidade. Sob uma perspectiva desconcertantemente feminina, o longa propõe um estudo sobre oportunidades abraçadas, as perdidas e o preço cobrado por cada uma delas. Embora peque pela conveniência ao estreitar o elo entre as tragédias pessoais das duas protagonistas, o longa dirigido por Carlos Vermut mergulha no universo do showbiz com inteligência, se apropriando de conflitos reconhecíveis neste efêmero mundo dentro de um contexto bem mais íntimo e profundo. 


As dúvidas de uma cantora pop às avessas com a perda de memória são ressignificadas à medida que ela se vê obrigada a enfrentar velhos fantasmas. A tocar em chagas parcialmente fechadas ao lado de uma fã contratada para resgatar uma chama que parecia apagada. Desta troca de experiências entre duas mulheres em posições totalmente distintas nasce uma trama pesada sobre libertação, culpa e as frustrações que surgem pelo caminho na jornada da vida. A arte, aqui, surge como um trampolim para um destino incerto. Um futuro abreviado pela estrela Lili (Najwa Nimri), e repentinamente alimentado pela anônima Vitoria (Eva Llorach). Carlos Vermut trata a arte como uma complexidade ímpar. A música que une também separar. A música pode aprisionar e também libertar. A música pode ser motivo de sonhos e também de pesadelos. 


Nem a música, porém, é capaz de cicatrizar velhas feridas. O realizador é implacável ao, a partir do estudo sobre a verdade de um artista, escancarar a dor destas mulheres. Vermut é genial ao associar o processo de criação de um músico à maternidade. O que só faz mais sentido quando o protagonismo do longa é 100% feminino. Embora situadas em realidades opostas, Lili e Vitória perderam o controle sobre a sua criação. Elas virsm as suas respectivas “obras” se tornarem “irreconhecíveis”. A amnésia em si surge como o agente catalisador para uma análise sobre os obstáculos impostos e autoimpostos durante a trajetória das duas. Sobre as vitórias e as derrotas. As perdas e os ganhos. Sobre aquilo que elas sacrificaram e o que elas receberam em troca. Sobre o estrago psicológico causado. No fim, seja uma estrela da música, seja uma anônima fã devotada, a conta sempre chega. 


Brilhante ao deixar muitas perguntas subentendidas, principalmente na relação entre Violet é a sua abusiva filha Martha (Natalia De Molina), Quien Ti Cantará extrai o suspense da vulnerabilidade das suas personagens, duas mulheres engolidas por suas ambições, falhas e pelas imposições de um mundo corrosivo. Uma obra elegante e intensa que contorna os deslizes narrativos com atuações poderosas, uma trilha sonora autêntica e uma abordagem atual sobre a relação do feminino com rótulos aprisionantes.

Um comentário:

Unknown disse...

Amei o filme e passei para todos os meus alunos de Espanhol fazer e encenar.