quinta-feira, 30 de abril de 2020

Crítica | Lucy in The Sky

Pretensioso demais, feminino de menos

Basta olhar a premissa de Lucy in The Sky para perceber o potencial do longa. Uma astronauta em êxtase com a sua última missão entra numa espiral de obsessão e determinação para conseguir retornar ao espaço o mais breve possível. No papel, um ‘plot’ com uma forte carga feminina, capaz de dialogar com temas tão atuais sob uma óptica bastante original. Na prática, porém, o diretor Noah Hawley entra em contradição ao investigar a jornada desta obstinada mulher usando uma régua moral masculina. Apesar do louvável esforço de Natalie Portman (e do talentoso elenco como um todo), o realizador sacrifica a complexidade de Lucy ao investir num estudo de personagem raso, contraditório e esteticamente pretensioso. O tipo de filme que se preocupa bem mais com a forma do que com o conteúdo. 


Inspirado em fatos, Lucy in The Sky causa um natural impacto inicial ao traduzir visualmente o misto de euforia e fascínio da personagem título na sua viagem ao espaço. Com efeitos digitais de primeira, Noah Hawley consegue nos fazer sentir o tamanho do feito de Lucy. O olhar de Natalie Portman para a imensidão do planeta Terra diz muito. Estamos diante de uma mulher no ápice da sua independência. Ela chegou em um lugar onde poucos chegaram. O objetivo da sua vida havia sido concretizado. O problema é que este emblemático segmento dura poucos minutos. Daí em diante, tal qual a protagonista, Lucy in the Sky esbarra num frustrante choque de realidade. O argumento assinado pelo próprio cineasta, ao lado de Brian C. Brown e Eliott DiGuiseppi, não consegue em momento algum mergulhar na psique de Lucy. Não consegue compreender a verdade desta mulher sedenta por novas experiências. Disposta a buscar o que julgava ser seu, uma nova vaga em uma próxima missão, ela se expõe, se sacrifica, rompe com um casulo que a asfixiava. Aos olhos de Hawley, no entanto, a desordem da protagonista fica reduzida à insanidade, à infidelidade e a obsessão. Falta profundidade, peso e verdade ao longa.


O primeiro grande problema de Lucy in The Sky, por sinal, fica claro logo nos créditos iniciais. É um filme sobre o tormento feminino escrito por homens, dirigido por homens e medido por uma régua moral masculina. Se por um lado Noah Hawley acerta ao traduzir o ambiente machista que cercava Lucy, principalmente na relação dela com o piloto sedutor vivido por Jon Hamm, por outro ele derrapa ao julgar a personagem título sob a perspectiva daqueles que deveria criticar. Ao invés de enxergar além da casca e dar voz aos conflitos mais íntimos de uma mulher cansada de manter os dois pés no chão, o realizador opta por estudá-la a partir dos seus atos. O resultado é frustrante, principalmente pela incapacidade do texto (e do diretor por consequência) em embutir um sentido nisso tudo. Ao contrário de títulos recentes como Ad Astra e o próprio Gravidade, Hawley trata tudo de forma muito literal. A sua dependência é quase química. Um vício. Ele em momento algum investiga os obstáculos impostos a ela (e a tantas outras mulheres), os motivos que a levaram a se tornar uma figura tão objetiva, independente e sedenta por algo novo. O realizador entende que o pretensiosismo estético seria o bastante para traduzir as emoções dela. Quando ela está em casa, o aspecto do quadro quase se fecha e assume uma forma um tanto repressora. Quanto trai o seu marido, os planos ganham efeitos quase lisérgicos. Quando vislumbra algo que a motiva, a câmera parece sempre mirar algo, com efeitos de transição de tela horizontais. Um experimentalismo visual gratuito e que pouco acrescenta.


O que mais incomoda em Lucy in The Sky, no entanto, são os unidimensionais personagens. Eles não são só rasos, como também totalmente desconectados da realidade. Falta dramaticidade na construção deles. Enquanto Lucy fica reduzida ao rótulo de desequilibrada, o marido vivido por Dan Stevens é o tolo feliz, o amante interpretado por Jon Hamm é o divorciado charmoso, a tripulante novata vivida por Zazie Beets é a competitiva sem voz, a sobrinha interpretada por Pearl Amanda Dickson é a adolescente solitária. O roteiro não se esforça em desenvolver o laço entre eles. Vou além. Se contenta em tratá-los como meros arquétipos. A única exceção, na verdade, fica pela figura materna vivida pela expressiva Ellen Burstyn, que, mesmo subaproveitada, traz consigo nuances que nos ajudam a entender a obstinação da protagonista. É na áspera\afetuosa interação entre mãe e filha, por sinal, que reside o resquício de autenticidade do longa. Até porque, na transição para o último ato, o que já era problemático fica pior quando Noah Hawley decide aquecer a trama de forma descompromissada. A impressão que fica é que o diretor não leva a sério o drama da sua personagem. A mudança de tom é tão abrupta e sem propósito que fica difícil entender. Sem querer revelar muito, o senso de sororidade da protagonista é explorado de forma lamentável.


Com algumas boas ideias, mas uma abordagem vazia e incoerente, Lucy in The Sky desperdiça o seu potencial num filme incapaz de verdadeiramente compreender a sua personagem e tudo o que ela poderia representar. No fim, apesar da intensa performance de Natalie Portman, o que vemos é um estudo desastrado sobre os conflitos e dilemas de uma entre muitas mulheres obrigada a aceitar o lugar que lhe foi imposto.

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