Com uma premissa instigante e uma
abordagem agressiva, O Poço causa uma repulsa natural ao investigar as sequelas
da desigualdade social sob uma perspectiva visceral. Na claustrofóbica e questionadora
alegoria dirigida por Galder Gaztelu-Urrutia, a fome surge como o estopim para
um estudo do indivíduo humano e da reação dele a diante de uma realidade que
insistimos em não enxergar. No fim, embora a mensagem derradeira esteja longe de ser
surpreendente, o longa provoca ao usar o choque como instrumento de reflexão,
principalmente por escancarar o impacto da miséria, do egoísmo e da degradação na identidade de um indivíduo.
Em O Poço, a lei do mais forte não tem tanta vez assim. Nem a do mais idealista. Nem tão pouco a dos que mais acumulam. Nesta vertiginosa prisão não existe espaço para a demagogia, a hipocrisia, boas intenções vazias, ou a ilusão do poder. Apesar das particularidades da premissa, o argumento assinado por David Desola e Pedro Rivero é inteligente ao construir um cenário que dialogue com a estrutura social em que vivemos. Perspicaz ao alimentar os segredos envolvendo a natureza desta inusitada instalação, o roteiro usa o mistério a favor da construção desta reconhecível estrutura social. A rigor, todos os prisioneiros ali presentes tinham os mesmos direitos. Uma cama, um espaço seu, um utensílio escolhido previamente, uma curta "janela" de alimentação. Todos pretensamente iguais. Homens e mulheres. Assassinos e letrados. Um simples detalhe, porém, era o bastante para causar o desequilíbrio. Quanto mais acima neste edifício você estivesse, mais chances você tinha de comer. Quanto mais abaixo, mais exposto a selvageria e a deterioração você estaria. A máquina era regida pelos próprios reclusos. Todos ali poderiam comer. Todos ali poderiam morrer de fome. O abismo que separa estas duas possibilidades, por sua vez, é bem mais profundo que o buraco que os interliga.
Com um ‘set piece’ original e uma
construção de mundo intuitiva, O Poço coloca o dedo em
enraizadas feridas sociais com gosto ao enxergar além do duelo de classes. Tal
qual a estrutura social em que vivemos, um dia podemos estar em cima, no outro
estarmos em baixo. Ninguém tem certeza de nada. A efemeridade só potencializa a
desordem física\emocional dos personagens. A fome dilacera. A fome causa
violência. A fome degrada. A fome degenera. Por mais que, seguindo a lógica
visceral da premissa, o roteiro trate a fome com angustiante literalidade, Galder
Gaztelu-Urrutia é cuidadoso ao estudar o impacto da desigualdade social a
partir das reações dos protagonistas. Através da perspectiva do humano
Gorengue (Ivan Massagué), o cineasta investiga o estrago causado pela
insensibilidade, pela falta de recursos, pela raiva e pela ganância. O estudo,
aqui, diz mais sobre o indivíduo do que sobre o Estado. Diz mais sobre a consequência do que sobre a causa. A prisão só replica a
estrutura do mundo em que habitamos. Com a diferença que, ali dentro, eles
ainda podiam fazer alguma diferença. O que só ratifica a mensagem que, a rigor, nós somos parte do problema.
Urrutia é também contundente ao
apontar o dedo para o espectador. Intencionalmente ou não, nós fazemos parte
desta engrenagem desvirtuada. Nós olhamos para cima sem sequer cogitar que um
dia poderíamos estar em baixo. As palavras são tão vazias quanto o estômago
daqueles que são esquecidos. O conceito de solidariedade (tão frequentemente confundido
com esmola para muitos) é sumariamente contestado ao longo da trama. Por mais
nobre que seja as intenções, só aqueles que realmente agem são capazes de
colocar um fim neste círculo vicioso. Em sua camada mais profunda, El Hoyo (no original) é um estudo sobre a empatia humana, sobre a capacidade de entendermos a dor alheia, de sacrificarmos algo em prol de um bem maior. Neste sentido, Gorengue surge como o
protagonista perfeito. É impossível não se reconhecer nele, não identificar com
as suas intenções, não se perder junto dele neste mundo cruel e desumano. O
Poço, por sinal, não é um filme para estômagos fracos. A violência é gráfica. O
realizador nos obriga a enxergar o pior do ser humano em sua face mais primal.
A visceralidade do argumento se replica também na ação. Os limites são
quebrados na busca por sobrevivência. O horror, enquanto gênero cinematográfico, é explorado com coragem e particularidade. O tipo de obra que, tal títulos recentes como Corra! e Nós, não se envergonha em explorar algumas tradicionais convenções do gênero (o gore e o senso de claustrofobia são explorados com peso por Urrutia) sem ofuscar o brilho da alegoria social. Portanto fique esperto.
Na transição para o último ato,
porém, O Poço esbarra em algumas arestas narrativas na ânsia de pontuar a sua
mensagem. Ao preferir não se aprofundar nos segredos em torno da real natureza
da instalação, o longa esvazia o peso do último ato à medida que não desenvolve as motivações de Gorengue. Os atos dele fazem todo o sentido e são coerentes
com a sua jornada. O problema está naquilo que o move. Altruísmo? Desespero? Tolice? Idealismo? Tudo isso? Ou nada disso? O roteiro se apressa e peca pela
conveniência. A relação entre ele e o determinado Baharat (Emilio Buale), por
exemplo, merecia ser trabalhada com maior esmero. O mesmo, aliás, vale para as
recorrentes aparições da feroz Mali. O clima de mistério, que serviu tão bem ao
primeiro ato, limita o alcance do clímax. No fim, após uma jornada excruciante,
o recado que o filme manda para a “superfície” soa um tanto ingênuo. Quase redundante. Inocentes também fazem parte deste círculo vicioso. A miséria é implacável. Ao menos o
diretor é consciente ao nos deixar em dúvidas se aquilo seria o bastante para
parar uma engrenagem tão inclemente. Nada que, verdade seja dita, diminua o
impacto causado por O Poço. Com um design de produção expressivo e atuações
consistentes, Galder Gaztelu-Urrutia escancara a culpa do indivíduo numa obra
capaz de replicar a desigual estrutura social em que habitamos com enorme propriedade e indiscutível autenticidade.
Um comentário:
Perfeita análise 👏👏👏. Parabéns Tiago.Vou assistir.
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