“Eu vou fazer um filme sobre
você, pai”. Apenas uma das inúmeras das estrelas mirins de Hollywood que se
tornaram um problema, Shia LaBeouf encontrou em Honey Boy a oportunidade para
expurgar alguns velhos traumas. Uma autobiografia intensa e reveladora, o longa
dirigido por Alma Har’el investiga a raiz dos tormentos deste caótico ator num
processo quase terapêutico. Mais do que contar a sua própria história, ou
explicar a natureza dos seus problemas, o astro da franquia Transformers se
abre com franqueza aos olhos do público. A intenção não é terceirizar
responsabilidades. Não é somente apontar culpados. Por trás do seu
comportamento existe um inclemente círculo vicioso. Ao olhar para o seu
complexo pai, LaBeouf não enxerga um inimigo. A mágoa dá lugar a uma tentativa
de compreensão num complexo e angustiante estudo sobre a paternidade num
universo recheado de particularidades.
Dividido em duas linhas temporais
distintas, Honey Boy funciona mesmo quando se concentra no passado. Na jornada
da estrela mirim em potencial (Noah Jupe) obrigada a conviver com a
instabilidade do seu temperamental pai (Shia LaBeouf) para dar sequência ao seu
sonho. Numa opção corajosa e que só acrescenta mais peso ao projeto, o ator se
expõe emocionalmente ao encarar aquele que sabidamente lhe fez tanto mal. E
isso sem rancor. Também responsável pelo roteiro, LaBeouf é cuidadoso ao
enfrentar velhos traumas a partir deste olhar sobre a sua turbulenta infância.
Maduro o bastante do alto dos seus 33 anos, ele consegue enxergar o melhor e o
pior do seu pai. Mais do que isso. Parte do perdão nasce da capacidade dele em
se colocar na posição do seu progenitor pela primeira vez. Em estudar a raiz do
seu comportamento com humanidade e sem condescendência. Por trás da criação
tóxica, agressiva e masculinizada existia um homem igualmente amargurado. Um
filho do abandono. Parte da sua natureza vil nasceu da sua origem. Do ambiente
em que ele se formou. Alma Har’el não só entende isso, como estuda isso.
Rodado em grande parte num
modesto quarto de hotel, o ambiente imersivo desta passagem da trama permite
que enxerguemos com clareza os dois lados desta disfuncional relação. Os altos
e baixos. O afeto escondido num gesto ríspido e a violência enrustida na
preocupação. A realizadora nunca reduz o veterano de guerra James a posição de
mero oportunista. A precocidade do pequeno Otis gera um choque natural com a
instabilidade do seu pai. Aos olhos de Alma Har’el tudo soa mais humano. O
texto, potencializado pelas poderosas performances de Shia Labeouf e Noah Jupe,
captura o efeito devastador da toxicidade na formação de Shia. O seu pequeno
alter-ego reage a tudo com um misto de maturidade, compreensão, dor e tristeza
de partir o coração. Sob a perspectiva do garoto, a diretora investiga a luta
dele para reabilitar o seu pai, para se conectar com ele, para enxergar além da
casca hostil. Har’el se encanta pelos pequenos momentos de afeto, mostra
admiração ao traduzir o esforço do menino para fazer dar certo. Quando preciso,
no entanto, a realidade toma a tela de forma cortante. Mesmo quando tenta
ajudar, James pode ser perigoso. A sua distorcida visão de criação\mundo
machuca, magoa, dilacera. O abuso, aqui, assume uma face muito mais
psicológica, do que física. Uma realidade que, graças ao senso de humanidade do
texto, só reforça o quão grave pode ser o estrago causado por este tipo de
sequela invisível. Tal qual o pequeno Otis, Honey Boy enxerga as múltiplas faces
desta figura paterna. O elo entre pai e filho. O vínculo de dependência, de
proteção, de cumplicidade.
Uma pena que, nos momentos em que
invade a rotina do adulto Otis (Lucas Hedges), Honey Boy soe tão raso e
irregular. Por mais que o longa nasça deste exercício de metalinguagem, com o
agora astro do cinema obrigado a escrever sobre o seu pai para se libertar dos
seus fantasmas e da reabilitação, o argumento frustra ao se concentrar apenas
na casca do protagonista. Otis grita. Otis surta. Otis reage com agressividade.
Os seus atos, porém, são vazios. Alma Har’el não consegue estudar as camadas do
homem formado num ambiente tão disfuncional. Reduzir tudo a figura paterna soa
um tanto condescendente aqui. Na ânsia de aparar as arestas desta relação, Shia
LaBeouf derrapa ao não assumir também as suas falhas. Em se colocar como uma
nova parte deste círculo vicioso. Menos mal que, talvez consciente de que a
força do filme esteja no passado, a realizadora abrevia o tempo de tela do Otis
adulto. Os melhores momentos deste segmento estão nas passagens mais oníricas,
quando as duas linhas temporais se unem em sonhos com muito a dizer sobre a
raiz dos problemas do agora crescido filho. Num todo, aliás, embora o longa
perca ritmo na transição entre o passado e o presente, Har’el compensa com uma
direção enérgica e vistosa. O cenário central, um decadente hotel de beira de
estrada, se transforma num palco robusto nas mãos da realizadora. Nas passagens
mais ásperas, ela invade a intimidade dos protagonistas com uma câmera fechada,
movimentos repentinos e um filtro opaco ideal para traduzir a sujeira
(física\sentimental) do ambiente em que Otis cresceu. Já nos momentos mais
doces, como no passeio de moto por uma estrada de Los Angeles, ou na interação
do menino com uma jovem prostituta, Har’el consegue extrair a beleza do mesmo
cenário com planos mais abertos, enquadramentos delicados e uma palheta de
cores mais vibrante. A sequência em que Otis se declara silenciosamente para o
seu pai usando uma das suas cenas é de uma sensibilidade ímpar. Ponto para a
estilosa fotografia em tons quentes de Natasha Braier (The Rover: A Caçada).
Com um nível de intimidade cada
vez mais raro em Hollywood, Honey Boy, ou melhor, Shia LaBeouf faz as pazes com
o seu passado numa sessão de terapia travestida de autobiografia. Mais do que
cumprir a promessa que abre este texto, o ator e roteirista é inteligente ao
tocar em feridas totalmente reconhecíveis aos olhos do espectador, refletindo
sobre as responsabilidades parentais numa obra humana, autêntica e libertadora.
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