quarta-feira, 18 de março de 2020

Crítica | Honey Boy

Sessão de terapia

“Eu vou fazer um filme sobre você, pai”. Apenas uma das inúmeras das estrelas mirins de Hollywood que se tornaram um problema, Shia LaBeouf encontrou em Honey Boy a oportunidade para expurgar alguns velhos traumas. Uma autobiografia intensa e reveladora, o longa dirigido por Alma Har’el investiga a raiz dos tormentos deste caótico ator num processo quase terapêutico. Mais do que contar a sua própria história, ou explicar a natureza dos seus problemas, o astro da franquia Transformers se abre com franqueza aos olhos do público. A intenção não é terceirizar responsabilidades. Não é somente apontar culpados. Por trás do seu comportamento existe um inclemente círculo vicioso. Ao olhar para o seu complexo pai, LaBeouf não enxerga um inimigo. A mágoa dá lugar a uma tentativa de compreensão num complexo e angustiante estudo sobre a paternidade num universo recheado de particularidades. 


Dividido em duas linhas temporais distintas, Honey Boy funciona mesmo quando se concentra no passado. Na jornada da estrela mirim em potencial (Noah Jupe) obrigada a conviver com a instabilidade do seu temperamental pai (Shia LaBeouf) para dar sequência ao seu sonho. Numa opção corajosa e que só acrescenta mais peso ao projeto, o ator se expõe emocionalmente ao encarar aquele que sabidamente lhe fez tanto mal. E isso sem rancor. Também responsável pelo roteiro, LaBeouf é cuidadoso ao enfrentar velhos traumas a partir deste olhar sobre a sua turbulenta infância. Maduro o bastante do alto dos seus 33 anos, ele consegue enxergar o melhor e o pior do seu pai. Mais do que isso. Parte do perdão nasce da capacidade dele em se colocar na posição do seu progenitor pela primeira vez. Em estudar a raiz do seu comportamento com humanidade e sem condescendência. Por trás da criação tóxica, agressiva e masculinizada existia um homem igualmente amargurado. Um filho do abandono. Parte da sua natureza vil nasceu da sua origem. Do ambiente em que ele se formou. Alma Har’el não só entende isso, como estuda isso.


Rodado em grande parte num modesto quarto de hotel, o ambiente imersivo desta passagem da trama permite que enxerguemos com clareza os dois lados desta disfuncional relação. Os altos e baixos. O afeto escondido num gesto ríspido e a violência enrustida na preocupação. A realizadora nunca reduz o veterano de guerra James a posição de mero oportunista. A precocidade do pequeno Otis gera um choque natural com a instabilidade do seu pai. Aos olhos de Alma Har’el tudo soa mais humano. O texto, potencializado pelas poderosas performances de Shia Labeouf e Noah Jupe, captura o efeito devastador da toxicidade na formação de Shia. O seu pequeno alter-ego reage a tudo com um misto de maturidade, compreensão, dor e tristeza de partir o coração. Sob a perspectiva do garoto, a diretora investiga a luta dele para reabilitar o seu pai, para se conectar com ele, para enxergar além da casca hostil. Har’el se encanta pelos pequenos momentos de afeto, mostra admiração ao traduzir o esforço do menino para fazer dar certo. Quando preciso, no entanto, a realidade toma a tela de forma cortante. Mesmo quando tenta ajudar, James pode ser perigoso. A sua distorcida visão de criação\mundo machuca, magoa, dilacera. O abuso, aqui, assume uma face muito mais psicológica, do que física. Uma realidade que, graças ao senso de humanidade do texto, só reforça o quão grave pode ser o estrago causado por este tipo de sequela invisível. Tal qual o pequeno Otis, Honey Boy enxerga as múltiplas faces desta figura paterna. O elo entre pai e filho. O vínculo de dependência, de proteção, de cumplicidade.


Uma pena que, nos momentos em que invade a rotina do adulto Otis (Lucas Hedges), Honey Boy soe tão raso e irregular. Por mais que o longa nasça deste exercício de metalinguagem, com o agora astro do cinema obrigado a escrever sobre o seu pai para se libertar dos seus fantasmas e da reabilitação, o argumento frustra ao se concentrar apenas na casca do protagonista. Otis grita. Otis surta. Otis reage com agressividade. Os seus atos, porém, são vazios. Alma Har’el não consegue estudar as camadas do homem formado num ambiente tão disfuncional. Reduzir tudo a figura paterna soa um tanto condescendente aqui. Na ânsia de aparar as arestas desta relação, Shia LaBeouf derrapa ao não assumir também as suas falhas. Em se colocar como uma nova parte deste círculo vicioso. Menos mal que, talvez consciente de que a força do filme esteja no passado, a realizadora abrevia o tempo de tela do Otis adulto. Os melhores momentos deste segmento estão nas passagens mais oníricas, quando as duas linhas temporais se unem em sonhos com muito a dizer sobre a raiz dos problemas do agora crescido filho. Num todo, aliás, embora o longa perca ritmo na transição entre o passado e o presente, Har’el compensa com uma direção enérgica e vistosa. O cenário central, um decadente hotel de beira de estrada, se transforma num palco robusto nas mãos da realizadora. Nas passagens mais ásperas, ela invade a intimidade dos protagonistas com uma câmera fechada, movimentos repentinos e um filtro opaco ideal para traduzir a sujeira (física\sentimental) do ambiente em que Otis cresceu. Já nos momentos mais doces, como no passeio de moto por uma estrada de Los Angeles, ou na interação do menino com uma jovem prostituta, Har’el consegue extrair a beleza do mesmo cenário com planos mais abertos, enquadramentos delicados e uma palheta de cores mais vibrante. A sequência em que Otis se declara silenciosamente para o seu pai usando uma das suas cenas é de uma sensibilidade ímpar. Ponto para a estilosa fotografia em tons quentes de Natasha Braier (The Rover: A Caçada).


Com um nível de intimidade cada vez mais raro em Hollywood, Honey Boy, ou melhor, Shia LaBeouf faz as pazes com o seu passado numa sessão de terapia travestida de autobiografia. Mais do que cumprir a promessa que abre este texto, o ator e roteirista é inteligente ao tocar em feridas totalmente reconhecíveis aos olhos do espectador, refletindo sobre as responsabilidades parentais numa obra humana, autêntica e libertadora.

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