sexta-feira, 13 de março de 2020

Crítica | Lost Girls: Os Crimes de Long Island

Largadas à mercê da sorte

Muito mais do que um thriller criminal baseado em fatos, Lost Girls: Os Crimes de Long Island é enfático ao investigar a vulnerabilidade e o abandono enfrentado por muitas mulheres ao redor do mundo. Reconhecida no mundo dos documentaristas, a diretora Liz Garbus (What Happened Miss Simone?) coloca o dedo na ferida ao enxergar num caso real de desaparecimento a oportunidade de tocar em mazelas sociais bem mais profundas. Se falta apuro estético ao longa, a cineasta entrega um trabalho confuso visualmente, o viés crítico da produção original Netflix salta aos olhos, principalmente quando decide dar voz às vítimas do machismo estrutural que segue ceifando vidas diante da inércia estatal.

Inspirado numa daquelas muitas tragédias que cercam o nosso dia a dia, Lost Girls impacta pela franqueza com que invade a rotina de uma disfuncional família norte-americana. Com um elenco majoritariamente feminino em mãos, Liz Garbus toca em reconhecidas feridas sociais com clareza e objetividade. Ao contrário de muitos títulos do segmento, a realizadora descomplica as coisas ao nunca colocar o suspense à frente da realidade. A tensão, aqui, nasce da natureza do tema. O ambiente que cerca as personagens, por si só, já é desconfortável o bastante. Não espere, portanto, grandes ‘plot twists’, ou revelações mirabolantes. Diante de fatos tão sensíveis para muitas, Garbus é cuidadosa ao trocar o mistério pela verdade. Ao, por mais paradoxal que possa soar, tornar tudo o menos cinematográfico possível. Mais do que narrar a desesperadora jornada de uma mãe (Amy Ryan) à procura do paradeiro da sua filha, Lost Girls se sente obrigado a expor o contexto em que tudo aconteceu, a analisar os fatos a partir de uma perspectiva facilmente identificável.


O grande trunfo do longa, na verdade, está na capacidade do argumento assinado por Michael Werwie (Ted Bundy) em enxergar muito além do sumiço em si. Lost Girls joga limpo ao maximizar o tema. Ao valorizar as nuances dramáticas. Ao escancarar a vulnerabilidade feminina não somente sob a perspectiva da vítima, uma jovem prostituta. Sob uma óptica ferina e quase maternal, Liz Garbus escancara a revolta de um grupo de mulheres abandonadas por seus maridos, por seus pais, pela polícia e pelo Estado. Na luta por dignidade elas são obrigadas a se expor. Os múltiplos empregos geram a disfuncionalidade familiar. A falta de recursos potencializa problemas facilmente corrigíveis. A ausência de opções leva jovens mulheres a um mundo extremamente perigoso. Garbus é habilidosa ao escancarar o elo entre esses problemas. O círculo vicioso. Um percalço leva a outro. A Mari Gilbert de Amy Ryan é um tipo tridimensional. As suas falhas são dolorosas porque são inevitáveis. O esforço dela não é o bastante para desafiar uma realidade tão impiedosa. A iminente perda é apenas a ponta do iceberg. Consciente disso, a cineasta dedica o tempo necessário para estudar a dor desta mulher, o impacto do desaparecimento na sua relação com as suas filhas (vividas com intensidade pelas excelentes Thomasin McKenzie e Oona Laurance). A tragédia vai muito além. Ao mesmo tempo, ao valorizar o senso de conexão entre as famílias das vítimas, Garbus realça a importância da sororidade, da responsabilidade afetiva, da empatia. Em meio à indignação existe espaço para o companheirismo, para a resiliência, para o afeto, para a esperança.


Somado a isso, Lost Girls é implacável ao expor também o desdém oficial diante da explosão de casos de feminicídio. Liz Garbus é assertiva ao realçar a seletividade do estado e o preconceito. Mari é obrigada a agir para conseguir justiça. A sua indigna jornada é marcada pelo desdém, pela falta de apoio, pelo julgamento, pelo machismo, pela marginalização. O apático detetive interpretado por Gabriel Byrne traduz com clareza o misto de indisposição e remorso estatal. Todo o elenco, por sinal, faz jus ao viés realístico proposto pela diretora. Na busca da construção de uma atmosfera soturna, entretanto, Garbus peca pelo visual da obra. Falta valor de produção. A fotografia escura de Igor Martinovic não valoriza a expressividade dos atores em cena, nem tão pouco os potentes enquadramentos fechados da propositalmente invasiva câmera da realizadora. Tudo é muito invariavelmente opaco e sem vida. O que, a meu ver, enfraquece a experiência cinematográfica. A angústia em diversos momentos nasce muito mais da dificuldade em enxergar o que está em tela do que propriamente na natureza do tema em questão. Além disso, nas passagens em que se transforma Mari na detetive da sua própria história, o longa flerta demasiadamente com as conveniências narrativas, o tipo de solução que contrasta com a abordagem nua e crua da película. 


Nada que, diante da urgência do tema proposto, reduza o impacto de Lost Girls. Ao longo de fluídos 95 minutos de projeção, Liz Garbus renega alguns dos mais tradicionais clichês dos filmes inspirados em fatos ao enxergar a oportunidade de fazer a diferença numa obra crítica, real e alarmante. No fim, num mundo em que a justiça é seletiva e tardia, o conforto pode vir na busca pela verdade de uma das inúmeras mulheres abandonadas à mercê da sua própria sorte.

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