Basta abrir o catálogo Netflix
para perceber quem verdadeiramente “domina” os filmes de suspense na atualidade. Blumhouse e James Wan que
me perdoem, mas alguns dos melhores títulos recentes do gênero tem minado como
água da Espanha. Impulsionado por uma talentosa safra de diretores, o segmento
tem mostrado a força do cinema deste país em obras instigantes, inteligentes e
muito populares. O recente sucesso do original Netflix O Poço (leia a crítica aqui), por exemplo, não me deixa mentir. Embora alavancado pelo status da gigante
do streaming, o visceral thriller social dirigido pelo promissor Galder Gaztelu-Urrutia
causou um rebuliço nas redes sociais como há muito não se via no gênero. Foi
visto, comentado por muitos, questionado por alguns, exaltado por tantos
outros. Algo natural para uma obra crítica e de natureza divisiva. A Netflix,
por sua vez, já enxergou o potencial (e o retorno) destas produções espanholas.
Tem investido pesado na compra dos direitos de filme já finalizados, na
realização de produções originais e na exibição de muitos destas obras. A mais
nova aposta da companhia é o intrigante A Casa (escrevo sobre ele abaixo),
thriller social estrelado por Javier Gutierrez e pelo astro Mario Casas que promete
fisgar o fã do segmento com um ‘plot’ enervante sobre um publicitário
desempregado obcecado em recuperar o que foi seu. Neste artigo, portanto,
decidi preparar uma pequena lista com alguns destes filmaços que ajudaram a
transformar o cinema Espanhol em referência do suspense na atualidade.
E não teria como abrir esta lista
com outro nome que não fosse Guillermo Del Toro. Sim, o realizador por trás dos
excelentes O Labirinto do Fauno e A Forma na Água é mexicano. Foi na Espanha,
porém, que um dos seus primeiros ‘hits’ foi filmado\produzido. Numa coprodução
entre os dois países, A Espinha do Diabo deu a popularidade que Del Toro
precisava para se tornar um dos grandes realizadores do gênero na atualidade. Ambientado
num orfanato em plena guerra civil espanhola, o longa estrelado por Federico
Luppi e Eduardo Noriega transitou entre o drama, o horror e o suspense com
originalidade ao acompanhas as desventuras de um grupo de jovens às avessas com
uma perigosa ameaça. Como de costume nas suas obras, o monstruoso está longe de
ser o maior problema. O viés fantasmagórico só ajuda a potencializar o peso da
produção. Nada pode ser mais nocivo que o ser humano. Del Toro transformou isso
na essência do seu cinema.
- O Orfanato (2007)
Produzido por Guillermo Del Toro,
O Orfanato ajudou a lançar um dos mais requisitados realizadores espanhóis da
atualidade. Influenciado por títulos como o citado acima, o thriller
fantasmagórico dirigido por J.A Bayona ganhou popularidade ao acompanhar as
desventuras de uma desesperada mãe à procura do seu desaparecido filho. Com uma
visão própria sobre o horror e o fantasmagórico, o longa provoca um misto de
sensações ao nunca reduzir tudo a paranormalidade. No embalo da intensa
performance de Belén Rueda, o cineasta estreitou os laços entre o suspense e o
drama num filme com uma atmosfera sinistra, ‘jump scares’ memoráveis e um
desconcertante senso de consequência. Um grande filme que instantaneamente
alcançou o público ao redor do mundo.
- Os Olhos de Julia (2010)
Oriol Paulo. Anote este nome. Ele
aparecerá aqui várias vezes. Um dos realizadores mais criativos dentro do
gênero na atualidade, o roteirista\diretor se acostumou a nos brindar com obras
instigantes e surpreendentes. Seus ‘plot twists’ costumam ser daqueles capaz de
surpreender até o mais calejado. Algo que ficou bem claro num dos seus
primeiros grandes projetos, o tenso Os Olhos de Julia. Dirigido por Guillem
Morales, o longa mais uma vez estrelado por Belén Rueda causa uma aflição natural
ao narrar as desventuras de uma mulher com uma doença visual degenerativa
diante de uma perturbadora ameaça. Transitando habilmente entre o paranormal e
a realidade, Morales, auxiliado pelo texto de Paulo, fisga o espectador num
thriller imprevisível.
- O Corpo (2012)
Um dos meus títulos favoritos
desta lista, O Corpo é o tipo de suspense raiz. Tudo aqui conspira para a
construção da atmosfera de tensão. A premissa é inquietante. O roteiro é
desenvolvido com solidez. Os personagens provocantes. A fotografia causa um
arrepio natural. Os efeitos sonoros só ajudam a potencializar a imersão. O
melhor, porém, está no texto de Oriol Paulo. Escrito e desta vez também
dirigido por ele, o longa estrelado por José Coronado e Belén Rueda instiga ao
acompanhar a jornada de um investigador diante de um complexo assassinato e do
sumiço do corpo da vítima. Num daqueles filmes recheados de alternativas,
Paulo, mais uma vez, se apropria de diversas convenções do gênero na tentativa
de tornar a experiência do público a mais imprevisível possível. O resultado é
brilhante. Daqueles que remetem aos melhores do gênero.
- O Desconhecido (2015)
Claustrofóbico e angustiante, O
Desconhecido é o tipo de obra enervante que ora e vez brota no cinema. Com uma
premissa simples em mãos e um carro como cenário, o longa dirigido por Dani de
la Torre coloca um pai e seus dois filhos na mira de um homem ameaçador e uma
bomba. Criativo ao explorar o desafio que é rodar uma obra dentro de um
ambiente tão limitador, o realizador espanhol extrai a adrenalina do mistério
em torno do motivo do ataque e dos segredos envolvendo o protagonista. Embora
não carregue consigo o brilhantismo narrativo de alguns dos títulos citados
acima, De la Torre compensa com energia, intensidade, virtuosismo técnico e reviravoltas
bem sustentadas. Um daqueles filmes sufocantes praticamente do começo ao fim.
- Um Contratempo (2016)
Um suspense da melhor qualidade, Um Contratempo é um daqueles títulos que perdem todo o sentido diante dos spoilers. Buscando referências em títulos do quilate de Testemunha de Acusação, Amnésia e O Sexto Sentido, Oriol Paulo, eu falei que ele retornaria, faz jus ao clima de mistério proposto pela trama ao nos brindar com uma obra intrigante, envolvente e recheada de inteligentes reviravoltas. Numa proposta realmente hipnotizante, o realizador não perde tempo ao estabelecer o seu insinuante jogo de gato e rato, mantendo o clima de tensão num patamar realmente elevado ao mostrar um enigmático crime sob múltiplas perspectivas. O que temos então é uma sucessão de inteligentes ‘plot twists’ unidos por uma trama inquietante, uma estrutura narrativa capaz de ir e vir com desenvoltura e soluções genuinamente surpreendentes.
Um dos cineastas mais cultuados do cinema espanhol, Alex de La Iglesia não poderia ficar de fora desta lista. Com produções um tanto peculiares, ele é o tipo de cineasta que costuma dividir o espectador. Em O Bar, porém, vemos a sua face mais acessível. E não menos provocante. Poucos filmes recentes, na verdade, traduziram tão bem a natureza humana nos centros urbanos. Presos num bar após ouvirem uma série de tiros, um heterogêneo grupo de indivíduos afunda na paranoia e na desconfiança à medida que passam a duvidar que um dos ali presentes poderia estar por trás das mortes. Com um elenco talentoso em mãos, capitaneado pelo já elogiado Mario Casas e pela exuberância dramática de Blanca Suaréz, Iglesia entrega um filme de ações e reações. Um thriller enérgico, caótico e angustiante que, embora se renda as convenções do gênero no ato final, o faz com ironia.
- O Segredo de Marrowbone (2017)
Embora falado em língua inglesa,
O Segredo de Marrowbone é mais um triunfo do cinema espanhol. Escrito e
dirigido por Sérgio G. Sanchez (roteirista de O Impossível e O Orfanato), o longa
estrelado por George Mackay, Anna Taylor Joy e Charlie Heaton tocou em reconhecidas
feridas com originalidade ao narrar as desventuras de quatro irmãos obrigados a
assumir as rédeas das suas vidas quando a sua querida mãe morre repentinamente.
Com um viés clássico e uma construção de atmosfera autoral, o realizador mergulha
na rotina destes jovens usando o suspense e o terror como uma inteligente ponte
para um estudo sobre o amadurecimento precoce e as sequelas da disfuncionalidade.
No fim, O Segredo de Marrowbone causa um inesperado impacto ao criar uma ameaça
extremamente reconhecível aos olhos do público. O fantasma do abandono, da
brutalidade, da solidão.
- Durante a Tormenta (2018)
Olha quem está de volta. Sim, Oriol Paulo. E com mais um thriller singular o bastante para atrair a atenção da gigante Netflix. Embora seja o longa mais derivativo da sua filmografia, em Durante a Tormenta o cineasta mostra mais uma vez autoralidade ao imprimir a sua vigorosa assinatura numa história tantas vezes contada dentro da Sétima Arte. Fazendo um inteligente uso do recurso da viagem no tempo, Paulo transita com habilidade entre a fantasia, a ciência e a realidade ao dar contornos tensos a um engenhoso ‘plot’ envolvendo um assassinato, uma tragédia e um desesperador desaparecimento. Mesmo com soluções narrativas convenientes e um dispensável quê didático, o realizador é eficaz ao proteger a maior parte dos segredos da sua obra, criando uma forte conexão entre público e protagonista enquanto investiga as perigosas consequências de se mexer com o passado.
Responsável pelo início de uma das mais populares franquias de horror espanhola, a saga Rec, Paco Plaza é mais um dos expoentes do cinema espanhol na atualidade. O que fica bem claro quando assistimos Quem Com Ferro Fere. Reconhecido pela visceralidade das suas produções, o realizador mergulha na psique de um homem vingativo num thriller de máfia intenso, dramático e realista. No embalo da densa performance de Luis Tosar, o filme pode até perder alguns pontos em função do superficial desenvolvimento do passado do protagonista, um cuidador obrigado a cruzar o caminho de um perigoso mafioso, mas compensa com um estudo inclemente sobre o efeito na vingança na identidade dos seus personagens. A tensão, aqui, nasce não só dos atos, mas principalmente das consequências deles. As motivações corroem. O revanchismo é tratado, como esperado, como algo nocivo. É no preço a ser pago que acertadamente Plaza sustenta o suspense. Conhecendo Plaza, o resultado não poderia ser mais plausível e dilacerante.
- O Poço (2020)
Com uma premissa instigante e uma
abordagem agressiva, O Poço causa uma repulsa natural ao investigar as sequelas
da desigualdade social sob uma perspectiva visceral. Na claustrofóbica e
questionadora alegoria dirigida por Galder Gaztelu-Urrutia, a fome surge como o
estopim para um estudo do indivíduo humano e da reação dele a diante de uma
realidade que insistimos em não enxergar. No fim, embora a mensagem derradeira
esteja longe de ser surpreendente, o longa provoca ao usar o choque como
instrumento de reflexão, principalmente por escancarar o impacto da miséria, do
egoísmo e da degradação na identidade de um indivíduo.
- A Casa (2020)
E para fechar a lista a última grande aposta do suspense espanhol da Netflix. Com elementos da afiada série Mad Men e o ambíguo senso de pertencimento\posse do ‘hit’ Parasita, A Casa se apropria com autenticidade do conceito de idealização da felicidade publicitário num thriller intrigante, denso e enervante. Um filme inteligente que resiste em se tornar previsível ou mirabolante. Um estudo sobre expectativas criadas e o estrago emocional causado pelo impositivo rótulo do sucesso. Guiado pelas soberbas performances Javier Gutierrez e Mario Casas, o elegante longa dirigido por David e Álex Pastor traduz a deterioração emocional de um publicitário com peso e um pertinente viés crítico. Diante do desespero do protagonista, o obcecado Javier, a dupla de realizadores é cuidadosa ao extrair a tensão da sua distorcida visão de mundo. Se por um lado o argumento patina ao investigar o impacto da “derrota” na relação dele com a sua esposa e filho, por outro os Irmãos Pastor compensam ao investigar a sociopatia do personagem com extrema naturalidade. Não espere grandes reviravoltas. Ou atos repentinos. Ao contrário do clássico Um Dia de Fúria, onde uma série de imprevistos leva o executivo vivido por Michael Douglas à atos raivosos, em A Casa Javier mais implode do que explode. É na falta de limites do protagonista que nasce o mistério. Os Irmãos Pastor são habilidosos ao não antecipar os passos dele. O que Javier quer? Qual o seu plano? Estamos diante de uma jornada de vingança? De um indivíduo revoltado com a falta de oportunidades? Ou de um psicopata disposto a recuperar o que julgava seu na base da força? Guiado por essas e outras indagações, A Casa provoca um misto de sensações ao buscar compreender o seu personagem custe o que custar, mergulhando na sua subversiva lógica publicitária num thriller sobre perdas, ganhos e a felicidade (vazia) que floresce do materialismo.
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