segunda-feira, 30 de março de 2020

Crítica | Blow The Man Down


Vivendo em comunidade

O primeiro longa-metragem das diretoras Danielle Krudy e Bridget Savage Cole, Blow The Man Down investiga o peculiar senso de comunidade de uma pequena cidade portuária norte-americana num thriller envolvente, esperto e com um particular toque feminino. Por mais que às referências ao clássico moderno Fargo (1996), dos Irmãos Ethan e Joel Coen, sejam evidentes, a produção Amazon Studios renega o teor jocoso\ácido ao mergulhar na jornada de um grupo de mulheres unidas por males tão reconhecíveis. Com um elenco talentosíssimo em mãos, as diretoras extraem o máximo do instigante cenário gélido em prol da construção do suspense e da tensão, usando um assassinato como uma mera “desculpa” para um estudo muito mais profundo sobre raízes, laços familiares e empoderamento.


Vamos ser bem sinceros. Blow The Man Down é o tipo de filme que parte de uma premissa batida. Após perder a sua mãe, um jovem, a indômita Mary Beth (Morgan Saylor), se envolve com o homem errado, na hora errada. Desesperada, ela pede ajuda a sua irmã, a centrada Pris (Sophie Lowe). O que já era por si só bizarro ganha contornos mais drásticos quando as duas se deparam com um saco de dinheiro que poderia solucionar todos os seus problemas. Isso, claro, sem sequer desconfiar que o(a) dono(a) da grana poderia só piorar a situação delas. Um ‘plot’ simples, objetivo, sem um grande diferencial. Aparentemente... O primeiro grande acerto das diretoras Danielle Krudy e Bridget Savage Cole está na capacidade delas em nunca se prender demais às suas protagonistas. O crime é apenas o agente catalisador da trama. A partir da perspectiva das duas jovens, o argumento aquece as coisas ao se concentrar na mudança da rotina desta pequena (e misteriosa) cidade do interior. Existe algo por trás de tudo isso. A presença majoritariamente feminina numa comunidade pesqueira traz um charme especial ao longa. Figuras como a cativante idosa Susie (June Squibb), a impositiva dona de bordel Enid (Margo Martindale) e a turrona Doreen (Marceline Hugot) ajudam a tornar tudo mais complexo. Os atos das duas garotas abalam uma tradicional rotina. E alguém terá que pagar por isso.


Por incrível que pareça, Blow The Man Down cresce à medida que se distancia do assassinato em si. O suspense em torno da investigação é corajosamente colocado em segundo plano pelo roteiro. Danielly Krudy e Bridget Savage Cole são astutas ao renegar parcialmente as convenções do gênero. A vítima, aqui, tem pouca importância. As cineastas, na verdade, acertam em cheio ao mirar no impacto do crime nesta fechada comunidade. Ao propor, a partir da vulnerável posição das protagonistas, uma investigação sobre os segredos em torno da região comandada com pulso firme por um grupo de mulheres. Sem a intenção de responder todas as perguntas, o roteiro assinado pela dupla de diretoras é inteligente ao atrelar o mistério ao estudo do ‘modus operandi’ daquela cidade. É legal ver como a trama debate a precocidade das protagonistas na relação delas com as veteranas que a cercavam. Os diálogos, muitas vezes insinuantes, escancaram uma verdade que elas não precisaram enfrentar. A sororidade, aqui, surge como uma manifestação de força, proteção e poder. Krudy e Cole criam um cenário muito autêntico. A rigidez gélida da região contrasta com a superproteção imposta por este grupo. A aparente simplicidade do argumento se esvai diante da visão complexa e humana com que a dupla de realizadoras aborda a realidade destas mulheres. Por trás da casca pacata existe uma história. E é nela que reside a essência da película.  


Um traço autoral que, por sinal, impede que o longa seja mais um na multidão. Até porque, quando o assunto é o protagonismo, Blow The Man Down faz de Mary e Pris as suas verdadeiras vítimas. Após um início promissor, as duas personagens são engolidas com um contexto bem mais interessante do que os seus dramas. Embora, a rigor, o arco das duas cresça consistentemente até o clímax, falta sal a dupla. A carência de personalidade das irmãs reflete, a meu ver propositalmente, o vazio que as cercava. Ao contrário das “protetoras” mulheres da região, elas cresceram num ambiente funcional e seguro. O despreparo delas é tão natural quanto o seu desespero. Um choque aflorado pela entrada da acuada prostituta vivida por Gayle Rankin. Sem querer revelar muito, esta crescente personagem rouba merecidamente as atenções, principalmente por representar a ponte para uma realidade urbana reconhecível. Ela é a filha de um mundo disfuncional. Um projeto de mulher que ainda as incomodava, mas não por motivos conservadores. Um desconforto potencializado pelas imponentes performances do núcleo experiente, em especial de June Squibb, doce como de costume, e Margo Martindale, intensa na pele de uma mulher apegada ao seu passado. Outros destaques do longa ficam para a expressiva fotografia de Todd Banhazl, singular ao extrair cores inesperadas de um cenário tão frio, e para a irônica trilha sonora masculina, recheada de tradicionais cantos de pescadores.


Com um ‘plot’ simples, uma atmosfera peculiar e uma abordagem autêntica, Blow The Man Down encontra a energia nas suas maiúsculas personagens femininas e na relação delas com um crime capaz de colocar em risco tudo aquilo que elas construíram. Do choque de gerações nasce uma representativa passagem de bastão. Um filme sobre jovens obrigadas a criar uma repentina casca para proteger o que é seu. A liberdade, a autonomia, o controle da situação. Custe o que custar.

Nenhum comentário: