A figura do Zé do Caixão sempre me causou um misto de espanto e curiosidade. A criação do saudoso cineasta José Mojica Marins tinha esse poder. Um personagem que transcendeu a barreira do cinema. Virou um ícone, uma lenda do cancioneiro popular, um símbolo de algo genuinamente assustador. Muitos o conheciam sem sequer ver seus filmes. O que, infelizmente, não era tão incomum assim. Na minha infância, o Zé do Caixão que tenho como referência era o da TV. Dos programas, das entrevistas, das reportagens cômicas\sinistras. Seus filmes eram uma raridade na TV aberta. Entre os anos 1980 e 1990, com a derrocada da Embrafilme, Mojica teve que se “virar” em outros subgêneros, entre eles o do cinema erótico. Suas obras se tornaram mais extremas. Nunca tive estômago para este tipo de produção. Basta se deparar com os seus primeiros filmes, entretanto, para percebermos a autenticidade e o visionarismo no cinema de José Mojica Marins.
Antes de outros expoentes do cinema de horror mundial, entre eles George Romero, Dario Argento e John Carpenter, o realizador brasileiro conseguiu se aproximar de uma linguagem trash\marginal sem renegar o clássico. O personagem do Zé do Caixão tinha muito de Drácula\Nosferatu e ao mesmo tempo nada. As referências eram claras. O visual soturno. Os gestos arcados. A aparência pálida. O “apetite” por jovens mulheres. Em sua essência, porém, Coffin Joe (como ficou conhecido nos EUA) era um personagem mundano. Suas intenções eram realisticamente perversas. A sua maldade não vinha da mitologia, ou de uma maldição. O que fica bem claro logo no primeiro grande filme de José Mojica Marins, o magnífico À Meia Noite Levarei sua Alma (1964). Lançado alguns meses depois do Golpe Militar de 1964, o clássico do cinema de horror brasileiro nos apresentou a um personagem detestável por natureza. Zé do Caixão era um coveiro niilista, machista e misógino que acreditava na vida mais do que tudo. O seu “poder” nascia da opressão sobre os mais fracos. O que, numa análise óbvia, viria a dialogar diretamente com o contexto na época do lançamento do filme. Um Brasil prestes a mergulhar num período de trevas, morte, impunidade e inconsequência humana.
A força de À Meia Noite Levarei sua Alma, aliás, nasce verdadeiramente da provocação. Estamos diante de um filme terror com um protagonista que renega o místico. Condena o sacro. Que debocha de tudo aquilo que não acredita. Através de Zé do Caixão, José Mojica Marins coloca o dedo na ferida de um Brasil desigual, repressivo e conservador. O que mais assusta na figura do antagonista não é a sua sinistra presença, nem a sua aversão aos valores tradicionais, mas é a sua humanidade. Estamos diante de uma figura contraditória, falha, obsessiva, tóxica e repulsivamente passional. A visão de mundo machista\misógina de Zé do Caixão ainda hoje incomoda porque, guardada as devidas proporções, reflete a mentalidade de muitos. A mulher, aos olhos dele, não tem direito a voz, não tem direito a opção. É um simples instrumento de submissão\reprodução. O roteiro assinado pelo próprio José Mojica Marins é genial ao extrair o máximo do paradoxo da situação do vilão. Um coveiro com apetite pela vida. Ter um filho representava se manter vivo. Enquanto os vampiros de Bram Stoker se alimentavam de sangue, Zé do Caixão queria existir a partir dele. “O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência”. Logo no genial monólogo de abertura, o cineasta brasileiro subverte um clássico elemento do vampirismo ao tratar a possessão como algo mais carnal. A violência, aqui, é brutal, é urbana, é reconhecível. O medo é puro. O tipo de vilão que poderia "habitar" entre nós. O que, pelo menos para mim, é sempre mais assustador.
O mais genial em À Meia Noite
Levarei sua Alma, entretanto, está na capacidade de José Mojica Marins em questionar
a crença do seu personagem e a maneira com que investiga as suas mais íntimas
fraquezas. O homem que não temia nada, que blasfemava contra Deus, que não
reconhecia a existência do Mal, que desrespeitava toda e qualquer manifestação de
fé, no fundo escondia uma ponta de dúvida. O diretor nunca reduz tudo ao mero
maniqueísmo. A deterioração emocional do possessivo Zé do Caixão cresce à
medida que ele se vê obrigado a tomar o que julgava seu. Numa sacada genial do
argumento, que cresce gradativamente ao longo das fluidas 1 h e 20 min de
duração, o nêmeses do personagem é uma mulher que acredita. Mojica se apropria
do conceito de bruxa com maestria. Se a força dele nasce da opressão, a dela
nasce do conhecimento, da expansão da perspectiva. Enquanto um está cego pela sua vaidade, a outra enxerga
tudo aquilo que ele não consegue ver. Tal qual muitos, Zé do Caixão teme aquilo
que desconhece. Teme o destino. O medo é corrosivo também para ele. A falsa sensação de
poder\controle dele se esvai diante da sua petulância, da culpa e do peso dos seus atos.
Mais uma vez é fácil traçar um paralelo com o Brasil do regime militar. Na
visão de Mojica, o único capaz de desafiar o mal é aquele que verdadeiramente
acredita. Que resiste, que persiste, que luta fiel às suas crenças.
Independente de qual sejam elas. E o mal teme aqueles que não ignoram, aqueles
que não se alienam, aqueles capazes de enxergar as suas múltiplas faces.
Se tematicamente À Meia Noite
Levarei a sua Alma impacta, tecnicamente a obra de José Mojica Marins
impressiona. O texto, para começar, é recheado de divagações poderosas. Por
mais distorcida que pudesse ser, a visão de mundo de Zé do Caixão provoca
reflexão. Somado a isso, mesmo com um orçamento minúsculo (o diretor teve que vender a sua casa para conseguir a verba para o projeto), ele tira do
papel uma obra brilhantemente filmada. Seus enquadramentos são imagéticos. O
uso dos planos detalhes só realça a perversidade de Zé do Caixão e
expressividade de Mojica enquanto ator. Os planos sequenciais permitem que os delírios do personagem assumam uma forma desconcertante. A tensão é crível. O terror nasce do
desconforto. As criativas transições de cena injetam fluidez à trama. Os efeitos práticos e experimentais agregam muito a construção da atmosfera 'creep'. Como
disse acima, o diretor se aproxima de uma vertente trash\marginal sem nunca
renegar o estilo. E isso sem qualquer formação tradicional. Filho de um dono de cinema, Mojica foi um autodidata. As suas referências cinematográficas eram inúmeras. O seu olhar dentro do set apuradíssimo. O que já fica bem claro, por exemplo, logo numa das primeiras
cenas, quando uma bruxa nos desafia a seguir assistindo o longa por nossa conta
e risco. Um recurso que hoje pode até soar datado, mas, na época do lançamento,
deve ter causado um impacto bem marcante. À Meia-Noite Levarei a
sua Alma é um ‘hit’ cult que resistiu ao tempo. Um filme com um charme original
e um inteligente ar subversivo que ainda hoje é uma das principais referências
do cinema de horror brasileiro.
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