Basta ver As Golpistas para
entendermos a importância na luta por representatividade feminina entre as
diretoras. Nas mãos de qualquer um menos sensível, o longa comandado por Lorena
Scafaria fatalmente iria perder o foco. A abordagem tenderia a se concentrar
mais nas curvas do empoderado elenco feminino e menos nas curvas dramáticas.
Tudo é uma questão de ponto de vista. Sob a perspectiva masculina, sejamos
francos, o caminho mais fácil seria esse. As Golpistas, porém, não é mais um
filme sobre o submundo do strip-tease. Scafaria enxerga além dos fatos ao falar
sobre desigualdade, justiça social, falta de oportunidades, crise econômica e a
importância da união entre mulheres em tempos de crise. E isso, claro, sem
renegar a sensualidade das suas atrizes e o efeito causado por elas nesta
estilosa obra.
O primeiro ato de As Golpistas, com bem diz a personagem de Jennifer Lopez, nos atinge como um verdadeiro furacão. Lorena Scafaria invade o mundo destas batalhadoras mulheres com dinamismo, pulso narrativo e muito vigor estético. Mais do que expor a rotina destas dançarinas, a cineasta busca entendê-las, mostrar o outro lado do jogo, dar voz a verdade delas. Os holofotes estão nela não só nas elétricas performances no palco, mas principalmente nos bastidores. Ao contrário de diversos títulos do gênero, Scafaria se recusa a vitimizá-las. A diretora faz questão de exaltar a dignidade destas personagens, o poder delas dentro daquele microuniverso pretensamente masculino. Não se engane, quem manda ali são elas. E é isso que o longa faz questão de mostrar. Sem querer revelar muito, a sequência em que Ramona (J. Lo) surge no palco pela primeira vez é primorosa. Ao longo de uma dança sexy e provocante conhecemos a verdade daquela mulher. O dinheiro, quase que como um adereço de tela, surge como a motivação natural. Os homens, encantados por aquele balé de luxúria, são totalmente domados. Este misto de poder e imposição era o afrodisíaco natural destas mulheres.
O que mais me impactou em As
Golpistas, entretanto, é o senso de humanidade do roteiro assinado pela própria
diretora Lorena Scafaria. Por mais que o argumento estreite o nosso elo com as
protagonistas ao tratá-las quase como verdadeiras justiceiras, um grupo de
mulheres capazes de enxergar as fraquezas daqueles que praticamente quebraram economicamente
um país, a cineasta faz jus as expectativas femininas a nunca as reduzir a um
rótulo. Algo que, por sinal, o título brasileiro fez sem dó nem piedade. Enquanto
As Golpistas tipifica, Hustlers, no original, abre brechas para múltiplas conotações.
Batalhadoras, agitadoras, traficantes... Embora faça uso de algumas convenções
narrativas típicas dos filmes de assalto, com direito a montagem descolada e o
momento “entenda o plano”, Scafaria não se limita ao elemento mais
cinematográfico da história destas mulheres. Com base no artigo assinado pela
Jessica Pressler, a realizadora se sustenta na perspectiva destas mulheres, na
maneira encontrada por elas para viver num mundo machista, impiedoso e
desigual. Ao invés de focar no aspecto financeiro da coisa, algo bem comum em
títulos do gênero, Scafaria realça as sequelas do abandono, o preconceito, a
falta de perspectivas econômicas e o forte senso de sororidade entre elas. Elas
não tinham ninguém para as defender. Naquele mundo ou elas se uniam, ou estavam
por conta própria. Sob a óptica da recém-chegada a Nova Iorque Destiny
(Constance Wu) enxergamos a quebra neste paradigma. O clima de competição cessa
quanto Ramona vê nela a vulnerabilidade que talvez um dia tivesse enfrentado.
Em sua essência mais pura, As Golpistas é um filme sobre o poder da empatia
entre mulheres. Ao longo dos dois primeiros atos, em especial, a relação entre
as duas é conduzida com sensibilidade, principalmente pelo cuidado de Scafaria
em analisar o cenário que envolvia as duas. As mesmas mulheres que causavam
frisson no pole dance a noite, tinham pesadas responsabilidades na luz do dia.
Elas tinham bocas para alimentar, tetos para sustentar, filhas para educar.
Tudo é muito real e reconhecível aqui.
O que impede As Golpistas de
causar um impacto ainda maior é o constante flerte com algumas facilitações
narrativas. Por mais que, volto a frisar, o longa acerte em cheio ao focar na
intimidade daquelas mulheres, Lorena Scafaria vacila ao não preencher algumas
interessantes brechas narrativas envolvendo a crise financeira de 2008. O
roteiro sugere mais do que mostra. Os correntistas eram o principal ganha pão
delas. O salto temporal não me convenceu aqui. Somado a isso, na transição para
o último ato, o roteiro peca pela falta de acabamento. Os problemas chegam de
forma abrupta pata Destiny. Os conflitos entre pupila e mentora mereciam ser tratados
com maior profundidade. Ao mesmo tempo em que é assertivo ao focar na
consequência dos crimes, o argumento acelera as coisas ao arrematar o arco
dramático destas duas complexas mulheres. Um deslize, primeiro, atenuado pelas
marcantes performances de Jennifer Lopez e Contance Wu. Enquanto a diva do pop
injeta o empoderamento e a maturidade que a trama precisava para funcionar, Wu
compensa ao trazer um genuíno olhar humano a sua Destiny. É a partir dela que
vemos esse ousado projeto de independência crescer e desmoronar. Que melhor
enxergamos tanto a euforia, quanto o perigo. Tanto a expectativa de sucesso,
quanto o medo do fracasso. Uma linha tênue e ambígua valorizada também pela
estilosa direção de Lorena Scafaria. Fazendo um brilhante uso da trilha sonora
pop e da neonizada fotografia, a cineasta invade este mundo com sensualidade,
estilo e energia. Mesmo com os dois pés na realidade, a realizadora se permite
valorizar a beleza de tudo isso, a arte delas nos palcos. Os planos abertos
capturam a força destas dançarinas. Os planos fechados os seus truques para
submeter os homens. O expressivo uso da câmera lenta foca naquilo que muitos
não tinham intenção em perceber. Seja o orgulho de uma dançarina ao perceber
que faturou uma bolada, seja o irrelevante valor do dinheiro para um músico
bem-sucedido.
O tipo de contraste que faz de As
Golpistas uma das grandes surpresas cinematográficas de 2019. O que aos olhos
de alguns poderia soar um exercício de vulgaridade\apelação, aqui é belo, digno
e empolgante. Lorena Scafaria invade um universo pensado para o masculino com o
foco nas mulheres que o sustentam. No prazer delas, na luta delas, nas armas
que elas precisam usar para conquistar a tão sonhada independência. Uns jogam
dinheiro e outras dançam conforme a música.
Nenhum comentário:
Postar um comentário