terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Artigo | De volta aos holofotes, Renée Zellweger triunfou no Oscar 2020, mas a sua grande vitória foi contra a depressão


Poucos profissionais sofrem tanto em Hollywood quanto as mulheres de meia idade. De uma hora para outra o seu talento deixa de “servir”. Como costumo dizer, estamos diante de uma indústria sedenta pela juventude de suas atrizes. Com raríssimas exceções, entenda Meryl Streep, o que vemos é uma repentina mudança de paradigma. Algo que Renée Zellweger sentiu na pele como poucas. Nos anos 1990, a versátil atriz norte-americana se tornou um símbolo de sucesso. Seu nome, em especial nas comédias românticas, se tornou uma referência. Renée estrelou filmes lucrativos, Renée foi reconhecida pela crítica, Renée recebeu o Oscar de Melhor Atriz por Cold Mountain (2003). Da noite para o dia, porém, tudo se foi. A estrela de Jerry Maguire (1994) e O Diário De Bridget Jones (2001) experimentou o ostracismo. Com a chegada dos quarenta anos as portas começaram a se fechar. As oportunidades se tornaram mais raras. A qualidade dos seus projetos sucumbiu a isso. Veio então a depressão. A tristeza. O julgamento da mídia. Envelhecer é difícil em Hollywood. A sua volta por cima, no entanto, não poderia ser mais emblemática. Após quase seis anos longe dos holofotes, Renée Zellweger se reafirma com uma performance maiúscula em Judy. E vivendo uma artista de meia idade que, tal qual ela, se sacrificou em prol de sua arte. Uma das muitas estrelas consumidas pela indústria do entretenimento. 



É impossível não traçar um paralelo entre Judy Garland e Renée Zellweger. O que só torna as conquistas da carismática atriz norte-americana mais marcante. Filha de mãe norueguesa e pai suíço, Renée nasceu no Estado do Texas, nos Estados Unidos, no dia 25 de Abril de 1969. E desde cedo teve que batalhar para seguir o seu sonho. No período em começava a fazer faculdade de jornalismo, seu pai perdeu o emprego e ela se viu obrigada a trabalhar como garçonete para bancar os estudos. O que, segundo ela, foi uma grande lição. "Eu aprendi a não julgar as pessoas e que as coisas não eram preto no branco". Garland, por outro lado, foi um daqueles “produtos” da indústria. A sua batalha assumiu outra forma. Tão desgastante tanto, mas ainda mais perigosa. Estrela do icônico O Mágico de Oz (1936), a então jovem atriz se acostumou a conviver com as exigências de Hollywood. Judy não preenchia os padrões de belezas exigidos na época. O seu talento, por outro lado, era inigualável. Ela cantava como poucas, atuava como poucas. Sua presença emanava uma luz capaz de conquistar multidões. Os executivos tinham consciência disso. O que vimos então foi algo inclemente. Para manter o seu peso, Judy se acostumou a conviver com uma dieta regradíssima. Para aguentar o pique imposto pelos grandes estúdios, ela passou a ser “medicada” com drogas para mantê-la desperta o máximo de tempo possível. Antes de se tornar uma mulher Judy já convivia com distúrbios alimentares. A dependência química era uma consequência inevitável. Poucas brilharam como ela. Poucas sentiram na pele o preço do sucesso. Um reflexo que, indiscutivelmente, está entre os pontos altos do burocrático Judy. Um filme elevado pela poderosa performance de Renée Zellweger. Mais do que emular os trejeitos da atriz, ela conseguiu traduzir a verdade desta mulher deteriorada. O estrago era nítido. O talento e a presença iluminada já não era mais capaz de esconder o vício, a magreza, a falta de energia, a instabilidade emocional. Renée, talvez por experiência própria, conseguiu absorver os tormentos dela com maestria. 


Um processo de construção que começou cedo e de forma quase acidental. Ao contrário de Judy, Renée Zellweger não “nasceu” no showbiz. Muito pelo contrário. Durante a maior parte da sua infância\adolescência ela sonhava em ser escritora. Prova disso é que a atriz, então aspirante no curso de jornalismo, teve o seu primeiro contato com as aulas de drama somente em uma disciplina eletiva da faculdade. Ao interpretar uma cena de um conto de Flannery O’Connor, Zellweger se descobriu. O resultado causou espanto. “Era muito melhor do que eu esperava. (...) Só queria fazer (a cena) novamente. A partir deste ponto, não me importava para onde estava indo, só sabia que queria fazer isso. ”, revelou a atriz ao Vulture. Numa daquelas coincidências do destino, a sua personagem mais popular, a simpática Bridget Jones, era jornalista e também adorava escrever. Bem antes disso, tal qual muitas estrelas em potencial, Renée teve que suar a camisa para se destacar. Somente 1994, aos 25 anos, ela conseguiu dar os seus primeiros passos mais relevantes. Como muitas atrizes da sua geração, Renée Zellweger estreou nos cinemas em papéis pequenos. Com um Amor e Uma 45 (1994), Empire Records (1995) e O Massacre da Serra Elétrica (1995), ela alcançou certa popularidade. Neste último, aliás, Renée dividiu a tela com outra jovem estrela em ascensão, o galã Matthew McGounaghey. Foi com o hit Jerry Maguire (1996), porém, que ela alcançou o estrelato. Sem um ‘status’ para estrelar um título deste porte, Renée contou com a sorte e com o faro do astro Tom Cruise. Foi ele quem a escolheu para viver o seu par romântico no longa dirigido por Cameron Crowe. Cruise não poderia estar mais certo. A química entre os dois foi fantástica e o longa faturou US$ 273 mi ao redor do mundo. Pelo visto foi ela que o "conquistou com um oi". Ao receber o SAG Awards de Melhor Atriz por Judy, Renée fez questão de agradecer ao seu velho parceiro Tom Cruise, uma peça importante na sua ascensão em Hollywood. “Gostaria de agradecer a Tom Cruise pelo seu exemplo de profissionalismo no set e em busca da excelência, generosidade e bondade incondicional", disse a emocionada atriz.


Daí em diante o que vimos foi uma trajetória bastante reconhecível. Da noite para o dia Renée Zellweger “explodia” em Hollywood. No final dos anos 1990, ela se tornou sinônimo de comédia\comédia romântica de qualidade. Antes de triunfar em O Diário de Bridget Jones (2001), a atriz arrancou elogios nos longas Procura-se uma Noiva (1999), em Eu, Eu Mesmo e Irene (2000) e A Enfermeira Betty (2000). Neste último, inclusive, Zellweger ganhou o seu primeiro Globo de Ouro de Melhor Atriz em Comédia e Musical. Para encarar o filme da sua vida, no entanto, Renée teve que se esforçar. A sua escalação gerou críticas. Ela era magra demais e britânica de menos para estrelar a adaptação de O Diário de Bridget Jones. Para viver a carismática solteirona com crise de autoestima, ela teve que engordar dez quilos, ter aulas particulares para encarar o sotaque britânico e trabalhar por três semanas como trainee em uma produtora de livros local. E Renée foi recompensada. O Diário de Bridget Jones (2001) faturou US$ 281 milhões ao redor do mundo. Além disso, Renée conseguiu a sua primeira indicação ao Oscar. Com a aclamação vieram os papeis mais desafiadores. No início dos anos 2000, a atriz emplacou o drama Deixe-Me Viver (2002), o aclamado musical Chicago (2002), o elogiado drama de época Cold Mountain (2003), o excelente drama esportivo A Luta pela Esperança (2005), a agradável cinebiografia Miss Potter (2006). Renée se tornou um rosto recorrente na temporada de premiações. Por Chicago ela foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz. Por Cold Mountain ela levou pela primeira vez a estatueta dourada na categoria Melhor Atriz Coadjuvante. Renée Zellweger estava na primeira prateleira da indústria. Seus filmes faziam sucesso e davam lucro, suas personagens esbanjavam carisma, suas performances eram premiadas. De uma hora para outra, porém, a sua estrada dos tijolos amarelos ganhou curvas mais tortuosas.


O que veio a seguir é uma realidade ainda hoje sentida por muitas realizadoras. Em especial as atrizes. Renée Zellweger viu o seu prestígio se esvair rapidamente no momento em que cruzou a barreira dos quarenta anos. A atriz de O Diário de Bridget Jones e Jerry Maguire seguia ótima. As portas, no entanto, já não se abriam mais. Bastou um fracasso de público, o irregular O Amor Não tem Regras (2008), para que Renée experimentasse uma nova transformação na sua carreira. Desta vez daquelas ingratas. Seus filmes seguintes foram incompatíveis com o seu talento. A impressão que ficava era que ela tinha sido “substituída”, como um sofá velho, ou uma geladeira quebrada. Após estrelar o problemático suspense Caso 39 (2009), a crítica Anne Thompson, do IndieWire, constatou que Renée enfrentava “um incerto [futuro]" com uma indústria implacável que distribui poucos papéis interessantes para mulheres acima de 40 anos". Isso acontecia em 2009 e segue acontecendo em 2020. Em 2018, ao receber o Oscar de Melhor Atriz por seu papel em Três Anúncios para um Crime, Frances McDormand colocou o dedo na ferida ao lembrar desta ingrata realidade para muitas atrizes. “Gostaria de convidar ao palco todas as mulheres indicadas ao prêmio esta noite, atrizes, compositoras, figurinistas. Olhem a sua volta. Nós temos histórias para contar e projetos para serem financiados. Não falem com a gente apenas na festa nesta hoje. Nos convidem para ir ao escritório de vocês. Vamos ser roteiristas de inclusão”, clamou arrancando aplausos dos presentes. A escassez foi tanta que Renée decidiu se afastar. Ficou seis anos longe das telas entre 2010 e 2016. Recentemente ela admitiu ter sofrido de depressão. "Eu não estava saudável. Eu não estava me cuidando. Eu fui a última coisa na minha lista de prioridades... E quando chega a ser demais, quando você aprende que sua pele é não tão grossa quanto você precisa, como será? Bem, agora eu sei".


Nesse meio tempo, Renée Zellweger conviveu com o julgamento midiático. Em 2014, numa das suas raras aparições neste período, ela foi alvo de críticas (pasmem) pela sua aparência. Na busca pela jovialidade ela alterou as suas feições. Para muitos ficou irreconhecível. Um circo foi criado em torno de uma decisão pessoal. "Não que isso seja da conta de alguém, mas eu não tomei a decisão de alterar o meu rosto e fazer cirurgia nos olhos. A informação em si não é de nenhuma importância, mas o fato de ter sido discutida entre jornalistas de respeito e se tornado assunto público é desconcertante e mostra como notícia se confunde com entretenimento, além de ressaltar a fixação que a sociedade tem com o aspecto físico das pessoas", sentenciou Zellweger, em 2016, ao Huffington Post. Cansada de conviver com este tipo de “análise”, ela foi além ao questionar a posição da mulher dentro do mundo em que vivemos. "Não é nenhum segredo que o valor da mulher é historicamente medido por sua aparência. Apesar de termos evoluído em reconhecer a importância feminina na construção de uma sociedade de sucesso, e os cargos de influência que elas ocupam em diversos setores, o preconceito persiste, e é perpetuado pela conversa negativa que entra no nosso consciente todo dia em forma de entretenimento barato." Para ela, esse tipo de “cobrança” poderia custar caro para as novas gerações. “A mensagem que fica é problemática para as gerações mais novas, e sem dúvida resulta em uma série de questões como preconceito, igualdade, auto aceitação, bullying e saúde", concluiu Zellweger.


Antes mesmo de estrelar Judy, Renée Zellweger já falava em nomes das mulheres vítimas dos padrões de belezas impostos. Revigorada, ela começou a dar a sua volta por cima no divertido O Bebê de Bridget Jones (2016). Como de costume na sua filmografia, o retorno a personagem que a consagrou faturou expressivos US$ 211 milhões ao redor do mundo, comprovando que a radiante atriz seguia com a sua popularidade intacta. Mas com uma nova visão de mundo. Zellweger estava cansada de se sacrificar. A sua busca se tornou mais natural. Judy Garland surgiu como a oportunidade e também como uma resposta para ela. Como bem disse a crítica Zoe Gahan, do Vanity Fair, "é difícil dizer onde Garland para e Zellweger começa". Disposta a traduzir os tormentos da estrela da Era de Ouro de Hollywood, Renée mergulhou nos estudos mais uma vez. Se preocupou com os detalhes, os maneirismos, a dicção, os gestos. Mais do que isso. Ela decidiu soltar a voz. Mostrar o talento de Garland em sua face mais pura. No que diz respeito ao emocional, Renée foi a escolha perfeita. O paralelo entre as duas atrizes era claro. Ambas sofreram com a aparência. Ambas sofreram com o showbiz. Ambas experimentaram os dois lados da fama. Em entrevista ao El Pais, Zellweger foi enfática ao se posicionar contra esse processo. “Pelo menos hoje estamos falando disso e questionando coisas a que antes não cogitávamos nos opor. Quando as jovens chegam à maioridade e não conhecem um mundo com um teto de vidro, é inevitável que perguntem sobre desigualdades e por que têm que tolerar situações que são claramente abusivas.” Se Garland sucumbiu nas mãos do produtor Louis B. Mayer, Zellweger teria sido uma das vítimas do infame produtor Harvey Weinstein. Citada pelo próprio como uma das estrelas que lhe prestaram “favor sexual” para subir na carreira, Zellweger negou com veemência. Mais recentemente, ao New York Magazine, a atriz deu a entender que conseguiu se desvencilhar das investidas dele. “Eu nunca fui vítima disso. Eu sempre senti que sabia o que fazer nessas circunstâncias. Eu não me senti ... acessível. Eu nunca senti que estava sendo insultada, humilhada.”, disse Zellweger.  


“Renée estava extremamente emocionalmente e artisticamente envolvida com Judy”, admitiu a diretora de figurino Jane Temime. Algo que fica muito claro em cada segundo do burocrático longa. Ela é o coração, a voz e o rosto da cinebiografia. Logo na primeira exibição do longa, no Festival de Toronto, Renée Zellweger já sabia o que a esperava. Os longos minutos de aplausos a trouxeram de volta para a estrada de tijolos amarelos. O Oscar de Melhor Atriz foi um reconhecimento pelo seu trabalho, mas a sua grande vitória foi contra a depressão e contra os obstáculos impostos pela indústria. Zellweger agora parece preparada. Aos 50 anos, ela já está calejada para as peças que o show biz pode pregar. “Acho que a maioria dos filmes que eu estrelei não seriam feitos hoje. Sinto-me com sorte por ter vivido isso, mas não me importo que seja diferente. Somos menestréis. Nós atuamos para pagar o nosso jantar. E é isso que estamos fazendo mais do que nunca agora, e eu não me importo! O que eu realmente amo é que ainda posso fazê-lo.", revelou ao Vulture. E agora esbanjando amor próprio, sem a preocupação de saciar padrões e exigências. “Eu gosto da minha peculiar esquisitice, minha mistura descontrolada de coisas. Isso me permite fazer o que faço. Eu não quero ser outra coisa.” Uma afirmação que, infelizmente, muitas outras estrelas não conseguiram manifestar. Judy Garland morreu aos 47 anos. Renée Zellweger deu a "volta por cima" aos cinquenta. 

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